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O problema com a série 'Pam & Tommy'

Quem era adolescente ou adulto em meados dos anos 90 se lembrará da relação conturbada de Pamela Anderson e Tommy Lee, baterista do 'Motley Crüe'. Os mais novos sabem tudo sobre a história do ex-casal através do finado programa 'E! True Hollywood Story', do canal E! ou até pela internet. Na época, a estrela de 'Baywatch' era a epítome da barbie vixen enquanto Tommy era o roqueiro mais louco de Hollywood. 

Reza a lenda que os dois se casaram 96 horas após se conhecerem - o que não é exatamente verdade! - e esperavam pelo seu felizes para sempre, repleto de sexo, (drogas) e rock n' roll. A lua de mel, no entanto, acabou abruptamente quando a sex tape deles vazou nos primórdios da web em 1996. As repercussões da fita são o cerne da série 'Pam & Tommy', desenvolvida por Robert Siegel. 

Pamela e Tommy em tempos mais felizes 

A atração conta o romance de Pamela, interpretada por Lily James e armada com protéses impressionantes, com o badboy Tommy Lee, vivido por Sebastian Stan. Os enamorados residiam em uma 'bolha' amorosa até que o artista deixa de pagar o empreiteiro Rand Gauthier, papel de Seth Rogen, por seus serviços em sua mansão em Los Angeles, Califórnia, nos EUA. O funcionário fica furioso e, ao ser ameaçado com uma arma ao tentar recuperar suas ferramentas, decide roubar o cofre precioso de Tommy com a ajuda de outro funcionário. 

O que ele não esperava é que dentro do baú, além de armas, relógios carissímos e dinheiro, também encontaria a fita de sexo do casal. Rand tentou comercializar o vídeo em todas as empresas pornográficas da cidade, mas sem autorização, nada feito.  Com a popularidade da internet, Rand uniu o útil ao agradável e, para se vingar, vendeu o registro de Pam e Tommy com a ajuda da máfia e do amigo, o diretor de pornô Milton Ingley na web. Mas se o faz-tudo queria prejudicar Tommy, não deu certo: Pamela foi e continua a ser a verdadeira vítima. 

Lily James como Pamela Anderson na série 

Tommy Lee, é verdade, surfava na fama astronômica da banda Motley Crüe, mas quem tinha a carreira em ascensão era Pamela. Depois de posar inúmeras vezes para a Playboy, ela era uma das maiores estrelas de Baywatch e seria a protagonista de seu primeiro filme Barbie Wire - A Justiceira (1996), que foi um fracasso de bilheteria e crítica. 

Os três primeiros episódios de 'Pam & Tommy', dirigidos por Craig Gillespie, pecam em um ponto bem importante: dão mais ênfase ao visual (replicando, inclusive, a conversa bizarra de Lee com seu pênis na autobiografia 'TommyLand') do que ao contexto do romance dos protagonistas, em especial o passado do músico. Tommy, antes de se casar com Pamela, já foi marido da atriz Heather Locklear e a relação deles acabou com acusações de agressão, infidelidade e abuso de drogas. 

Pamela e Tommy/ Tommy e Bobbie Brown

Depois, o baterista começou a namorar a modelo Bobbie Brown (estrela do vídeo Cherry Pie, de Warrant) e eles terminaram o noivado quando Tommy tentou enforcá-la em 22 de dezembro de 1994. De acordo com a autobiografia de Bobbie, o 'Dirty Rocker Boys', o ex sempre a confundia com Pamela porque as duas eram muito parecidas - elas até participaram da série Married With Children juntas. O artista, inclusive, conheceu a estrela de Baywatch no Ano Novo, alguns dias após Bobbie colocar o ponto final na relação deles. 

Essa informação quebra a ilusão de que Pamela e Tommy viveram um romance conto de fadas desde o início: o músico de então 32 anos não teve a responsabilidade afetiva nem com a ex e nem com a atual, casando-se com Anderson em 19 de fevereiro de 1995 -menos de três meses depois de fazer juras eternas para Brown. Apesar disso, é importante frisar que os dois se amavam muito: ambos definiram um ao outro como "o amor de sua vida". 

'Pam & Tommy' se apresenta como uma série feminista para 'vingar' o machismo e o julgamento enfrentados por Pamela nos anos 90, contudo não exibe o passado violento de Tommy e como isso, além da fita de sexo vazada, afetou profundamente o casamento dos dois. 

Pam, Tommy e o primeiro filho do casal, Brandon, nascido em 1996

Os outros episódios de 'Pam & Tommy', desta vez dirigido por mulheres, com a produção-executiva de Gillespie, mostram a vulnerabilidade de Pamela e como o vídeo, na prática, apenas afetou o futuro da artista. Enquanto Tommy era visto como um 'garanhão', Pamela foi julgada como a 'vadia', ainda mais por ter posado nua, ter peitões e usar roupas sensuais. 

Nesses subsequentes capítulos, existe menos nudez e mais sororidade, adentrando no pânico e desespero da violação dos direitos da atriz. Anderson foi aconselhada por advogados em sua maioria homens, foi julgada e teve sua carreira arruinada pela misoginia. Para a Playboy, ela posou com consentimento e estava ciente das repercussões. Já com a fita de sexo, ela não forneceu o mais importante: o seu aval. 

'Pam & Tommy' é uma série muito bem-produzida, roteirizada e com atuações excelentes (não estou aqui para julgar isso!), mas o grande problema dela é o seguinte: Pamela Anderson deixou claro que não queria uma série sobre o caso e, mais uma vez, teve seu deferimento violado. Ninguém envolvido na série respeitou sua decisão, assim como não fizeram no auge do escândalo da sex tape.  


Pamela foi ridicularizada em talk shows, processou para tentar impedir que a fita se espalhasse e, para piorar, enfrentou tudo isso grávida - fato que não é detalhadamente explorado na série. Ela deu à luz Brandon, em junho de 1996, e Dylan em dezembro de 1997. Tommy, embora também tenha sofrido, passou pelo período turbulento praticamente intacto, afinal não era ele quem estava sendo realmente julgado. 

Com o lançamento da reportagem 'Pam and Tommy: The Untold Story of the World’s Most Infamous Sex Tape' de Amanda Chicago Lewis para a Rolling Stone, em 2014, a história ganhou um novo fôlego e Bob Siegel decidiu comprar os direitos da matéria. Tommy foi abordado e deu sua benção à série, via Entertainment Tonight: "Eu sinto como se tivesse ocorrido há muito tempo. Mas é uma história legal e as pessoas precisam saber. É legal, estou animado". 

Lily e Sebastian como o casal à direita - controvérsias à parte, a caracterização é incrível

Lily James, em entrevista para a Porter Magazine, diz que tentou conversar com Pamela antes de gravar a atração, mas não foi bem-recebida: "Eu realmente queria que ela tivesse se envolvido. Queria que tivesse sido diferente. Minha intenção era tomar conta da história e interpretar a Pamela de forma autêntica". Courtney Love, uma das amigas de Pamela, criticou publicamente a série, taxando-a de "perversa", enquanto o produtor-executivo da série, D.V DeVicentis, revelou que o objetivo era mostrar o "heroismo de Pamela". 

Mas como Anderson poderia se envolver em uma série que foi feita sem seu consentimento, fazendo-a reviver uma das épocas mais sombrias de sua vida? Essa não é a recriação de um crime famoso ou de um caso extraconjugal: e sim de um vídeo de sexo ilegalmente vazado. Os criadores de 'Pam & Tommy' são hipócritas: afirmam que o objetivo é conceder justiça à Pamela, mas como isso é possível se, novamente, eles desrespeitam a vontade da própria? 

Pam e Tommy em sua última reconciliação em 2008

Fontes próximas à atriz, para o ET, afirmaram que a estrela de 'Baywatch' "nunca assistirá a série" e mais: "Ela se sente violada até hoje. [A série] a faz lembrar de um momento terrível para ela. Tommy está bem com o lançamento da série e está animado para ver. Ele ainda não entende como esse incidente impactou Pamela de maneira diferente". 

Com o lançamento de 'Pam and Tommy', em fevereiro deste ano, a procura pela fita de sexo aumentou em mais de 120%, segundo o Google Trends. E não é difícil encontrar a fita em sites clandestinos, ou até mesmo em sites de busca confiáveis, o que viola, novamente, o direito de Pamela sobre o próprio corpo e imagem. Amigos próximos de Pamela revelam que outro erro da série não é só recriar o crime, mas sim as cenas reais da sex tape original. 

Atualmente, a modelo não sofreria tamanho escrutínio: na Califórnia, EUA, a lei contra o 'pornô de vingança' - que impede a divulgação de fotos e imagens de cunho sexual sem permissão - foi sancionada em 2013. No Brasil, vigoram as leis Carolina Dieckmann e também da importunação sexual. No final do século XX, no entanto, a internet era uma terra sem lei. 

O vazamento da fita afetou o casal de forma diferente

A série, produzida pela plataforma de streaming Hulu, está intrissecamente conectada à indústria do sexo dos anos 90, exibindo a transição de como as pessoas consomem pornô: de fitas cassetes para a dominação da internet, onde o consumidor encontra o que quiser e quando quiser. 'Pam & Tommy' peca ao não exibir a realidade da produção de filmes adultos, tanto para a web quando para consumo físico, exibindo moças praticando sexo de forma descontraída e quase cirúrgica. 

Segundo a pesquisa da ONG Pink Cross Fundation, fundada pela ex-atriz pornô Shelley Rueben, a expectativa de vida de uma mulher nessa área de profissão é de apenas 36 anos de idade. A taxa de infecção por doenças sexualmente transmissíveis é 10% maior e 70% dos trabalhadores do sexo são viciados em drogas lícitas ou ilícitas. 

Primeira capa (de 13) de Pamela para a Playboy em 1989

Hugh Hefner, criador da Playboy, foi um dos grandes responsáveis por tornar esse tipo de sexo rentável com o lançamento da Playboy em 1953. A primeira capa da revista? Marilyn Monroe, cuja fotos nuas também foram publicadas sem seu assentimento. Hugh está enterrado no túmulo ao lado da sex symbol, a mulher cuja carreira ele nem se importou se arruinaria ou não ao publicar as imagens eróticas. 

Ao longo dos anos, posar para a Playboy se tornou um rito de passagem para as aspirantes ao estrelato: ser convidada a posar nua por Hugh era uma honra. A carreira de diversas mulheres cresceu com essa exposição como Dorothy Stratten (antes de ser assassinada pelo ex-marido), Anna-Nicole Smith e Jenny McCarthy. 

Em 'Pamela in Wonderland', o sexto episódio de 'Pam & Tommy', que explora o passado da atriz, Hugh Hefner aparece como um mentor sábio, quase como uma figura paterna. A atração retrata a mansão Playboy como um lugar mágico, sem ao menos dosar algum tipo de realidade. Ex-coelhinhas da Playboy, inclusive ex-namoradas de Hugh, já o denunciaram por drogar mulheres, tirar fotos delas em atos sexuais sem permissão e abusos. 

Pamela e Hugh Hefner continuaram amigos até a morte dele em 2017

Em entrevista ao jornalista Piers Morgan, Anderson revelou que já foi convidada à uma das orgias de Hefner e ficou completamente desgostosa com a situação. A atriz, inclusive, admitiu que foi abusada sexualmente e molestada quando era criança. 

Bob Guccione, criador da revista pornográfica Penthouse é retratado como um inimigo por querer expor fotos da fita de sexo, assim como Rand, seu cúmplice Milton, a sociedade e a mídia. E eles devem ser responsabilizados! Mas retratar Hugh Hefner como um aliado - mesmo que ele seja aos olhos da atriz - não é fiel à realidade e nem às denúncias de milhares de outras mulheres. 

Em novembro de 1997, quando Pamela estava prestes à dar luz seu segundo filho, Dylan, o empresário do ramo pornográfico Seth Warshavsky conseguiu permissão para transmitir, ao vivo, o vídeo de Pam e Tommy em seu site Club Love. 

Pamela Anderson em seu maior sucesso: Baywatch

O ex-casal chegou a processar diversas pessoas diferentes, mas sem sucesso, em especial por Pamela ter posado nua anteriormente. No final de 1997, ambos abriram mão de seus direitos e permitiram que a empresa exibisse a fita pela internet. Em 1998, contudo, eles começaram a vender a fita nas finadas videolocadoras e foram processados pelos Lee, que nunca receberam o dinheiro e foram acusados de vazar a fita de propósito para ganhar fama e rendimento. 

A atriz e o baterista se divorciaram em 1998, após um caso de violência doméstica e, entre idas e vindas, se reconciliaram em 2008 e terminaram de vez em 2010. Nesse ínterim, outras sex tapes foram vazadas como as de Kim Kardashian e Paris Hilton, que construíram um império multimilionário com um porém: o assunto se tornou um gatilho eterno para ambas. 

Pamela também tentou 'lucrar' com a fita, sem poder impedir sua exibição, e continuou a posar nua e a explorar sua imagem em séries - porque sexo vende. A artista nunca teve a carreira cinematográfica que sempre sonhou, tornando-se uma paródia de si mesma para o público. Em março deste ano, ela felizmente anunciou a renascença de sua vida profissional: interpretará Roxie Hart na peça 'Chicago' na Broadway. 

Pamela resignada ao seu lado sexual na série 'VIP'

'Pam & Tommy' colocou os holofotes em Pamela de novo, porém à que custo? A série não tinha o direito de invadir, de novo, a privacidade da atriz, tornando uma história, outrora adormecida, em viral porque produtores, homens e mulheres, não aceitaram um 'não' - já que a modelo se recusou a ver seu sofrimento transformado em uma minissérie para lucro. Os personagens da atração, à todo instante, frisam a importância do consentimento de Pamela, mas, ironicamente, 'Pam & Tommy' não pratica aquilo que prega.  

A verdadeira benfeitoria seria apenas Anderson ter o direito de ditar como e quando quer contar sobre o escândalo. Se for nunca, ótimo: a decisão é dela. 

Pamela Anderson contará a sua história 

Em 2 de março de 2022, Pamela retomou as rédeas de sua história e anunciou o lançamento de um documentário pela Netflix, desenvolvido há alguns anos e dirigido por Ryan White. Em seu Instagram, Pamela garantiu que está pronta para contar tudo: "Minha vida. Mil imperfeições, mil interpretações erradas, maldosas, selvagens e perdidas. Nenhuma expectativa a atender. Posso apenas te surpreender. Não [sou] uma vítima e sim uma sobrevivente - e viva para contar minha história real". 

Afinal, a fita não foi vendida sob a alcunha 'Pamela Anderson's hardcore sex tape' à toa. Para a mulher, o sexo sempre tem um peso diferente - o homem é um mero coadjuvante glorificado. 'Pam & Tommy' tenta se vender como uma série reparadora, mas comete a mesma transgressão do passado. Basta! 

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