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Adélia Sampaio e a importância de Amor Maldito (1984)

Minha primeira conversa com Adélia Sampaio, a primeira mulher negra a dirigir um filme no Brasil, foi em 2016. Naquela época, eu preparava meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] - ao lado de minhas amigas - sobre mulheres no cinema. Quase seis anos se passaram até que eu entrasse em contato com a diretora de novo e, para minha surpresa, ela continuava bastante solícita. 

Apesar da conversa ter sido toda por e-mail, pude notar duas coisas importantes: a rapidez com que Adélia respondia minhas perguntas -eu mandava o e-mail e em menos de 10 minutos ela me replicava - e como as frases eram curtas e objetivas. Adélia é uma mulher que não perde tempo e, para mim, esse foi um dos motivos pelos quais ela conseguiu criar tantos projetos, inclusive seu filme mais famoso 'Amor Maldito (1984)'. 

Adélia Sampaio                              Reprodução/Arquivo Pessoal

Nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 20 de dezembro de 1944, Adélia Sampaio é filha, como ela mesma descreve, de "uma empregada doméstica, Guiomar, e criada em um asilo em Santa Luzia", onde não teve acesso aos estudos. A futura diretora ficou lá dos 5 aos 13 anos quando reencontrou a mãe e irmã, Eliana Cobbett no Rio de Janeiro. Adélia era bastante próxima da 'mana' e, foi graças à ela que se apaixonou pelo cinema - um caminho sem volta. 

"Por causa dela tive o deslumbre de entrar no cinema Metro Passeio para assistir 'Ivan- o Terrível (1944)'. O namorado dela na época William Cobbett [sócio da Tabajara Filmes, com quem Eliana se casaria] trazia filmes russos para o mercado brasileiro. Quando entrei assustada naquela imensa sala escura e surge na tela o personagem Ivan. Fiquei louca e me dizia internamente (isso é a janela do mundo um dia vou debruçar nela)", relembrou Adélia em nosso bate-papo. 

Adélia ao lado da mãe, Guiomar           Arquivo Pessoal

Antes de ser continuista no filme 'Gente Fina é Outra Coisa (1976)' de Pedro Carlos Rovai, Adélia já havia participado de diversas outras produções desde o começo dos anos 70. "Me orgulho muito por ter desempenhado com alegrias a função de Diretora de Produção, que na época era muito disputada", admitiu a diretora. 

Mas estamos nos adiantando! Antes disso, em 1962, a vida de Sampaio era mais pacata. Ganhando cada vez mais experiência ao lado da irmã e o marido dela, Adélia conheceu o marido, Pedro Porfirio. Ele produzia, sozinho, o jornal A Liga, defensor de ideias libertárias, pouco antes da ditadura militar se instaurar no Brasil. Em 21 de junho de 1963, ela e Pedro se casaram e passaram por uma barra pesada, transitando de emprego a emprego. 

Os dois conseguiram se tornar editores da revista Chuvisco no ano seguinte, transformando toda a idelogia e formato da publicação. Em 1965, nasceu o primeiro filho do casal, Vladmir, que é jornalista, e Georgia Melina, que foi figurinista premiada da TV Globo, em 1968. Naquele mesmo ano, Adélia conseguiu um emprego como telefonista na produtora Difilm, fundada por sua irmã, enquanto o marido trabalhava no jornal Correio da Manhã. Paralelamente, ela organizava sessões em 16mm para cineclubistas. 

Pedro Porfirio e Adélia no dia de seu casamento                       Arquivo Pessoal

Pedro foi preso em junho de 1968 pela ditadura militar e, infelizmente, Adélia chegou a ficar presa por um dia após ser pega, sob acusações falsas, com uma mala de dinheiro. Luiz Carlos Barreto, responsável pela distribuidora, se negou a demiti-la e a incentivou a libertar o marido. Apesar de algumas brigas conjugais, Adélia conseguiu libertá-lo da prisão em 1970 - e neste ano eles se separam. 

De acordo com a incrível pesquisa 'As Trajetórias de Adélia Sampaio no Cinema Brasileiro' de Clarissa Cé Oliveira, que você pode acessar aqui!, a irmã da cineasta, Eliana, é considerada uma das primeiras produtoras-executivas do Brasil. Ela faleceu em 2007 aos 65 anos de idade e foi essencial para o cinema brasileiro e, consequentemente, na carreira de Adélia. 

Adélia estava disposta a crescer na profissão e começou pelo teatro! Em novembro de 1971, ela se tornou produtora da peça 'Faça Alguma Coisa pelo Coelho, Bicho?' que estreou no Teatro Santa Rosa, no Rio, sob direção de Procópio Mariano, para ajudar o então quase ex-marido, Pedro. Segundo Adélia, o jornalista foi proibido de exercer a profissão e ela lhe deu a ideia de escrever um conto infantil. "Tenho hoje uma pasta cheia de recortes sobre a peça todos os colegas publicaram. A peça foi um sucesso, a história de uma onça que luta para provar a inocência do Coelho", relembrou a diretora. 

Encenação da peça Coelho em 1974                        Revista Manchete

Logo depois, ela fez um curso de continuista e começou a trabalhar em produções da Difilm, conciliando seu trabalho no teatro. Em 1974, ela se envolveu na peça 'Viva o Cordão Encarnado', inspirado no texto do escritor Luiz Marinho, que se tornou o primeiro musical verdadeiramente brasileiro. A apresentação foi dirigida por Luis Mendonça. 

Fui atrás da Elke Maravilha e a convenci a fazer a peça. Ilva Niño, Gracinda Freire, Tonico Pereira e Tony Ferreira, enfim 40 atores ao todo me orgulho muito de ter viabilizado o texto do primeiro musical brasileiro. - revelou Adélia durante nosso bate-papo. 

Além disso, foi produtora na peça 'Reinações de Monteiro Lobato' daquele mesmo ano.  

Gracinda e Elke em encenação da peça musical                             O Cruzeiro

Após participar ativamente de peças de teatro e em produções de filmes, como gerente e diretora de produção, Adélia Sampaio desenvolveu o roteiro do curta 'Uma Rosa Para Você', de 1973, dirigido por Vanja Orico, a grande diva do cinema brasileiro por conta de 'O Cangaceiro'. Pouco tempo depois, Adélia criou a história 'O Segredo da Rosa (1974)', ao lado de Mário Paris e Deise Valle, também dirigido por Vanja, da qual foi produtora e produtora-executiva.  

"Vanja havia feito o filme Jesuíno Brilhante - O Cangaceiro [1972], onde eu fazia produção, já tínhamos contatos. Foi lindo e gratificante eu gostava muito da Vanja. Eu a admirava desde que ela colocou um gibão de coro, chapéu da cangaceira e fez a volta na torre Eiffel para divulgar o cinema brasileiro", revelou Adélia em referência a bombástica visita de Vanja ao Festival de Cannes. Em 1973, Adélia criou sua própria produtora: a A.F. Sampaio Produções Artísticas. 

A cineasta trabalhou em diversos cargos no cinema, desde maquiadora a boom [operadora de microfone], além, é claro, de produtora e assistente em filmes como 'A Cartomante (1974)', 'Roy - O Gargalhador Profissional, 'Guerra da Lagosta', 'Chocolate e Morango', 'Ele, Ela, Quem?', 'Tenda dos Milagres', 'O Seminarista'- todos originalmente de 1977 - 'Parceiros da Aventura' e 'O Coronel e O Lobisomem', ambos de 1979. Neste ano, ela deu entrada em parceria de sua produtora com a Embrafilmes. 

Adelia nos bastidores de 'Ele, Ela Quem?', lançado em 1980          Reprodução/Arquivo Pessoal

Durante nossa troca de e-mails, Adélia fez questão de negar os boatos de que o filme 'Parceiros da Aventura' teria sido taxado de "a obra dos negrinhos" no Festival de Gramado em 1978: "Seria a primeira direção de Zé Medeiros meu amigo (maior fotógrafo do Brasil). Sugeri ao Zé que poderíamos montar um longa com 80% de atores negros. Dei entrada na Embrafilme para financiamento e foi negado por defender que preto não vendia. Resolvi ir para os jornais e eles recuaram quando saiu o resultado dos financiamentos, o nosso era o menor.  Ainda assim pegamos com proposta de não cortar nada. Nunca houve essa história de negrinhos, o que houve é que o filme voltou de lá com cinco prêmios!". 

Há muitos anos, defendia a tese de que a técnica (turma da pesada) deveria ler o roteiro do filme que iam fazer. Foi difícil, mas culturalmente aos poucos consegui o que desperta o desejo de evoluir na carreira. - revelou ela, que acredita piamente que o cinema é a janela da vida. 

Adélia em entrevista em 1988                                     Reprodução

Como mulher - e negra - Adélia enfrentou diversos desafios para se firmar na profissão, mas com a força de vontade e determinação conseguiu, aos poucos, realizar seu grande desejo: a direção. Em 1979, após adquirir conhecimento como produtora, ela dirigiu seu primeiro curta-metragem 'Denúncia Vazia', que conta a história de dois velhinhos, interpretados por Rodolfo Arena e Catalina Bonack, que decidem se suicidar após receber uma nota de despejo. Ela se inspirou na história real de um casal e até a sobrinha deles aprovou a obra. 

O curta se realizou, conforma ela mesmo relatou, ao conseguir que Rodolfo Arena, ator e diretor, "aceitasse ser dirigido pela preta iniciante e pobre. Paguei a ele o cachê em prestação. Já havia feito como diretora de produção filmes com ele. Consegui com José Louzeiro [amigo e escritor] o empréstimo de um apartamento que ele usava para trabalhar e contei com o cenógrafo premiado Regis Monteiro. Assim fizemos o filme com um ajuntamento de pessoas amigas, pena que elas estão partindo. Depois rodei os curtas 'Adulto Não Brinca' (1980), 'Agora um Deus Dança em Mim' (1981) e 'Na poeira das Ruas' (1984) - este conta com a canção 'Fascinação' de Elis Regina. 

Adélia dirigindo Adolfo no curta 'Denúncia Vazia' de 1979                 Reprodução

Em 1984, Adélia realizou o longa-metragem 'Amor Maldito' (1984), tornando-se a primeira mulher negra a dirigir um filme no Brasil. Assim como todos os seus curtas, a cineasta se baseou em uma história real para a obra -além de sua própria relação com o marido: de uma ex-miss, Vânia Silva Batista, que havia se suicidado pulando da janela de seu apartamento em 1980. A namorada, Ninuccia Bianchi, sem provas, era acusada de tê-la matado. Após um longo julgamento midiático, ela foi inocentada, porém perdeu seu emprego e a proximidade de amigos e familiares. 

Adélia contou com a ajuda, novamente, de seu amigo José Louzeiro, que era repórter policial e escritor, e eles montaram o roteiro com base no julgamento. O maior problema foi conseguir financiamento para o longa-metragem, que contava a história de amor entre duas mulheres.  

Primeira porrada veio da Embrafilme e Rio Filmes, [com quem ela já havia feito três curtas], que não permitiram sequer enviar o roteiro de autoria do José Louzeiro, embora eu tenha como produtora viabilizar via Embrafilme o ultimo filme do Lulu de Barros. Cumpri todas as etapas, não valeu de nada. Consegui fazer o filme com a sabedoria de minha irmã Eliana Cobbett, uma engenheira elétrica [Eddy Santos, que a conheceu na empresa Furnas, e lhe deu R$30 mil para o filme], meu ajuntamento e atores que se propuseram a fazer o filme com cachê relativo.

O casal William e Eliana - essenciais para o cinema e para Adélia        Jornal do Brasil 1980

'Amor Maldito' não gastou com estúdios, já que foi gravado todo em locações reais, emprestado por pessoas próximas ou convencidas por Eliana, que era a produtora executiva do longa. Guiomar, a mãe de Adélia, inclusive, a ajudou a achar uma Igreja para gravar, mas ficou furiosa quando soube que o espeço foi redecorado como uma de vertente evangélica.  

Como produtora, antes mesmo de ser diretora, Adélia manteve contato com diversos artistas e, assim, conseguiu Monique LaFond, Wilma Dias e Tony Ferreira para participarem do longa. Sem grandes verbas, ela propôs porcentual de qualquer retorno que o filme daria - e isso foi para todos, desde quem estava na frente e também por trás das câmeras. 

Em 'Amor Maldito', Wilma Dias - conhecida por sair da banana no programa Planeta dos Homens - interpreta a miss Sueli. Monique, em um papel bastante desafiador, interpretava Fernanda, sua esposa, que tem que se defender nos tribunais quando Sueli se suicida. Para a revista Manchete, Adélia descreveu o projeto com bastante orgulho: "Pela primeira vez um filme brasileiro tem a maior parte de suas sequências desenroladas em um tribunal, mas o mais importante é destacar a maneira adulta, sem preconceito, de abordar a homossexualidade". 


Como o filme tinha uma temática nova e que quebrava o tabu da homossexualidade, nenhum distribuidor de cinema queria exibi-lo. Magalhães, dono de um cinema de São Paulo que se tornaria o Kinoplex, deu a ideia para Adélia de vender 'Amor Maldito' como uma pornochanchada - gênero que fazia sucesso nos anos 70 e 80 no Brasil como um soft porn- para que ele fosse rentável. Sem saída, Adélia conversou com sua equipe e todos concordaram com essa opção. 

Em entrevista à Caixa de Sucessos, Adélia contou como foi difícil tomar essa decisão: "Me senti alvitada, eu e todos que fizeram o filme. foi uma tristeza, sentados no Amarelinho achamos que devíamos aceitar. Voltei para São Paulo, autorizei o material de porta de cinema e o filme entrou no terceiro dia. Leon Cakoff, o mais respeitado critico de cinema de São Paulo, foi assistir e fez uma bela defesa, lamentando o fato do filme estar no cinema de categoria pornô! No dia seguinte lotou o cinema e o Magalhães abriu mais duas casas". 

Amor Maldito foi exibido em todo o Brasil e acabou se pagando, ou seja, todos que investiram no filme tiveram seu dinheiro de volta, porém sem margem de lucro. Logo depois das sessões, Adélia foi convidada a exibir o filme no Lesbian Gay Festival em São Francisco, nos EUA e até conseguiu alguém para legendar a película. A Embrafilme, distribuidora, no entanto, decidiu levar outra obra, o Asa Branca que, segundo Adélia, foi "vaiado". 

Wilma e Monique em cena do filme                                 Reprodução

Sempre mesclando o cinema com o teatro, Adélia se tornou produtora da peça 'Tutti' de Ubirajara Fidalgo e, nos anos 80, criou o projeto 'Teatro no Subúrbio', permitindo que pessoas de regiões periféricas tivessem acesso aos espetáculos. A peça infantil 'Jamelaço' deu início a produção, em parceria com a Cooperativa de Cinema, que acabou após a chegada do "furacão Collor", como a cineasta bem se lembrou. 

Além de tudo isso, Adélia fazia questão de ajudar seus colegas de trabalho. Ela se tornou membro ativo do Sindicato dos Artistas e Técnicos, criando o Sindicato do Cinema. "Na época o recolhimento do imposto sindical dos técnicos de cinema era maior. Nos juntamos e fundamos o Sindicato do Cinema que tem hoje sede própria na Rua do Teatro, no centro do Rio de Janeiro", revelou a roteirista. 

Em 1987, Adélia dirigiu o documentário Fugindo do Passado: Um Drink Para Tetéia, uma História Banal, baseado no livro de Beyla Genauer, o 'Levantar Voo'. Nele, vítimas e torturadores falavam sobre a ditadura militar no Brasil, um assunto de extrema importância para a produtora -já que ela foi diretamente afetada pelo regime nos anos 60 e 70. O filme não foi escolhido para participar do Festival de Brasília do Cinema Brasieiro - se fosse, Adélia teria sido a única mulher, e negra, a competir pelos troféus Candangos de longa-metragem. 

Adélia dirigindo e ajudando a equipe                                        Reprodução

Sempre "mesclando cinema e teatro", conforme Sampaio relembrou, ela se tornou produtora de espetáculos como: 'Diretas Já, Já' em 1989,  'Fim de Semana na Casa da Zélia', de 1996, 'Tibobó City' em 2001, 'Dois Nego e Uma Branca', que se tornaria uma trilogia, e 'Um Nego e Duas Brancas' entre os anos de 2003 e 2005. 

Em 2004, Adélia escreveu o roteiro, ao lado de Paulo Markun, para o documentário 'AI-5 - O Dia que Não Existiu'. A obra aborda o ato institucional que decretou, de vez, a ditadura no Brasil. "Quero viver o tempo que for para deixar registrado a barbárie que fez a ditadura. Viajo muito para dar palestras e percebo que os jovens assistiram o documentário e posso falar mais", frisou a diretora. 

Em 1993, ao lado da filha, ela criou a Girassol Azul Produções Artisticas Ltda, e continuou a produzir e se envolver em filmes. Anos depois, em 2018, Adélia voltou a chamar atenção ao lançar o curta 'O Mundo de Dentro' e, durante nosso bate-papo, ela revelou que pretende rodar a continuação: 'O Olhar de Dentro'. 
"Este curta faz parte de uma tribologia onde me aprofundo nas mazelas e feitos de mulheres da geração 60. Uma das atrizes que faria seria minha amiga Maria Lucia Dahl, que faleceu recente. Se não tivesse a pandemia, íamos rodar logo após o 'Olhar de Dentro'. Pretendo rodar em agosto [deste ano com Stella Miranda] e que Deus me permita". 
Adélia Sampaio                                                  Reprodução

A ressurgência de Adélia Sampaio não é nova, mas é muito merecida! Em 2017, ela foi a inspiração para a criação da 'Mostra Adélia Sampaio' em Brasília, com o objetivo de fortalecer as produções de mulheres negras - e o evento já está em sua quinta edição. A diretora também deu o nome ao 'Prêmio Adélia Sampaio' no Iº Encontro de Cineastas e Produtoras Negras. Infelizmente, um ano antes, Adélia foi parada no aeroporto de Porto Alegre e obrigada a passar por uma revista por possuir próteses metálicas na coluna e um de seus joelhos - provando, assim, como o racismo ainda é intrínseco à nossa sociedade, apesar dos avanços em paralelo. 

Ao longo dos anos, em especial após ter sua história resgatada por Edileuza Penha de Souza, pesquisadora da Universidade de Brasília, Adélia foi homenageada em diversos festivais no nosso país, em mostras, exibições e conversas com o público. Focada, ela pretende tirar do papel o sonho de transformar 'A Barca dos Visitantes', a partir de cartas enviadas a presos políticos durante a ditadura, em realidade, focando na história da libertação do ex-marido, Pedro Porfirio - buscando captação de dinheiro desde 2014. 

Para Adélia, o mais essencial em sua arte é "falar ou mostrar o emocional dos seres humanos" e, por isso, forneceu o seguinte conselho para os cineastas iniciantes: "É importante ter fé e não deixar escapar nenhuma oportunidade, mesmo que ela te pareça pequena. Estabelecer pessoas em ajuntamento porque cinema não é uma arte isolada, ela caminha sempre para o coletivo. E principalmente acreditar. Eu ouvia minha mãe dizer sempre: 'pra cima do medo, coragem'. Abandonar o medo e as inseguranças". 

Adélia Sampaio nos anos 80                                     Reprodução

Hoje avó de três, Adélia inspirou outras cineastas negras como Camila de Moraes- a única além dela que teve seu filme 'O Caso do Homem Errado (2017)' exposto em cinemas comerciais - Sabrina Fidalgo, Larissa Fulana de Tal e Glenda Nicácio - e muitas outras. As profissionais têm maior exposição, porém o caminho ainda é árduo. Nos anos 80, em entrevista à revista Poti, a diretora definiu: "Somos uma sociedade machista. Vivemos em um país onde mesmo que a mulher produza tanto quanto o homem, a remuneração, a priori, sempre será menor porque ele tem 'mais capacidade'". 

Indagada sobre essa afirmação, em pleno 2022, Sampaio admitiu que a situação "não mudou quase nada". Porém enquanto tivermos o exemplo e as obras dela essa realidade pode e deve ser diferente.  

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Fontes:
A Saga de Uma Mulher Negra com o Cinema - Revista Trip
Matéria Jornal Hoje em Dia 2021
Cineastas Negros e Negras Fora do Eixo São Paulo - SESC
As Trajetórias de Adélia Sampaio no Cinema Brasileiro de Clarissa Cé Oliveira
Revista Filme Cultura

Muito obrigada Adélia por conversar comigo por e-mail. 

Cléo de Verberena - a primeira cineasta mulher do Brasil

Apagada da memória coletiva brasileira, Jacira Martins da Silveira foi uma das mulheres mais importantes do cinema do nosso país: foi graças à ela que tivemos o primeiro filme escrito, produzido, dirigido e atuado por uma mulher no Brasil. 


Nascida na cidadezinha de Amparo, em São Paulo, no dia 27 de junho de 1904, como comprova-se em sua certidão de casamento*, ela é a última de sete filhos de um casal interiorano. Segundo a edição de 1931 do CineArte, no entanto, ela é dita como órfã, que foi à São Paulo Capital para realizar seu sonho de se tornar uma diretora de cinema e de dividir sua vida com alguém, neste caso o rico fazendeiro César Melani, que veio a falecer em 10 de maio de 1935.


Cleo de Verberena, a primeira diretora mulher do cinema brasileiro                             Divulgação
O pai de César Melani, Angelo Beniamino Serafino Melani era um imigrante nascido na Itália, em 9 de abril de 1869 (alguns dizem 1853), que se mudou para a cidade de Franca, no interior de São Paulo. Ele chegou ao país em 7 de agosto de 1897, aos 24 anos de idade com sua mãe e outra irmã. Todos se reuniram e foram para Franca, cidade no interior na qual Angelo conseguiu obter uma vasta propriedade, formando inclusive a Organização da Confederação das Associações de Proprietários de Imóveis de São Paulo, com outros colegas. Casou-se com Amabile Facci, uma italiana também imigrante, e os dois juntos tiveram 10 filhos, entre eles César, o primogênito, em 28 de maio de 1903. Ele partiu para São Paulo, mais velho, para cursar medicina e ter o tão cobiçado diploma! Depois, passou a trabalhar em um banco. 

Já a história de nossa primeira cineasta, Jacira Martins da Silveira é um pouco mais complicada - além da data de nascimento ter uma divergência (com seu documento de 1962 afirmando ser a data de 27 de junho de 1909), no qual já foi comprovado por sua certidão de casamento que foi em 1904*- sua afirmação de ser órfã é um tanto curiosa. De acordo com registros, ela é a mais nova entre nove irmãos. Seu pai, José Martins Ribeiro Junior, nasceu em 1848 em Coimbra, em Portugal e faleceu em 1923 enquanto sua mãe Júlia Pereira da Silveira era de Amparo, no interior de São Paulo, mesmo, e os dois se casaram em 1885. Se a data de 1909 fosse a correta (o que não é), sua mãe teria 42 anos de idade quando dera à luz Jacira! 

Depois dessa contradição, os relatos parecem bater - com 15 anos de idade ela foi para a capital de São Paulo para complementar sua educação e, é claro, conseguir a chance de se casar bem. Aprendeu a bordar, a costurar, a tocar piano, enfim, o que todas as mulheres da época precisavam fazer para casarem com um partidão. Jacira conheceu César em uma festa e de acordo com a entrevista do filho deles, César Augusto, foi o amor pelo cinema que os uniu, com Melani trabalhando nos bastidores do cinema desde 1919.  O assunto em comum deve ter ajudado muito!
Jacira (Cléo) e seu amado Cesar (Laes)
Os dois logo se casaram e uma câmera que foi dada de presente para o casal na cerimônia, que ficou mais parecendo como destino. Infelizmente, os dois não tinham dinheiro para entrar nessa aventura, isso é, até que César ganhou um baita de um dinheiro. As fontes divergem, mais uma vez. De acordo com a entrevista do filho deles, Jacira e César conseguiram o dinheiro necessário quando ele ganhou a herança polpuda de seu pai. Já, através de pesquisa, descobri que em 1925, no mesmo ano em que o jovem garoto nasceu, César Pai ganhou mais de 22 milhões de réis, na época, era um baita de um dinheiro, com César privilegiado pela falência de Eugenio Barbato, possivelmente seu patrão na época.

De qualquer forma, o que interessa é que César conseguiu o dinheiro e ambos combinaram de criar um pseudônimo para o mundo do cinema. Foi assim que Jacira Martins da Silveira se transformou em Cléo de Verberena (antes de passar por nomes como Jara Mar e Cléo de Lucena) e César Melani em Laes Mac Reni (um anagrama de seu nome verdadeiro). Importaram equipamentos de última linha de Paris, na França e compraram um imóvel na Praça da Sé, nº 46, conforme conta o livro 
Feminino e plural: Mulheres no cinema brasileiro por Karla Holanda de Araújo, Marina Cavalcanti Tedesco e depois se mudaram para Perdizes, na Rua Tupi, no final dos anos 20, transformando-o na famosa Épica Films, a produtora para realizar o sonho de ambos no cinema.

Em entrevista com a revista Cinearte em 1930, ela revelou que Greta Garbo era sua atriz americana favorita, mas que tinha esperanças de ver o cinema brasileiro ser "tão imenso quanto nos Estados Unidos". Seus diretores de cinema favoritos eram Von Stroheim, que dirigiu A Viúva Alegre (The Merry Widow, 1925), e Fred Niblo, diretor de filmes como Ben-Hur (1925), A Marca do Zorro (Zorro's Mask, 1920) e Sangue e Areia (Blood and Sand, 1922). Sua atriz brasileira favorita, afinal, era Carmen Santos, que depois faria jus à essa predileção, tornando-se também atriz e diretora nos anos 40. 

Na matéria de filmes gostava particularmente de Sangue Mineiro (1929), dirigido por Humberto Mauro e Barro Humano (1929) do cineasta Adhemar Gonzaga, considerando-os os diretores mais notáveis do cinema brasileiro. O seu crush cinematográfico era o galã Paulo Morano - que parecia com seu marido, César. 

Segundo a revista Cinearte, em 1931, Cleo tinha duas manias bem características: era muito vaidosa, adorava andar sempre chique e tinha mania de levar, consigo, uma camélia perfumada e colorida no vestido. Ademais, amava colecionar retratos de artistas do cinema. 
Carmen e Cleo juntinhas 
Mas, voltando a falar de Cleo de Verberena, ela escolheu como seu primeiro projeto o filme O Mistério do Dominó Preto, lançado em 9 de fevereiro de 1931. De acordo com o jornal Gazeta, ele foi baseado no romance do escritor mineiro Martinho Correa (publicado como uma série jornalística no jornal A Noite em 1912 e que foi base de tese de Marcella Grecco sobre o filme da Cleo) e a atenção aos detalhes por trás da câmera de Cleo, foi incrível. Pelo menos é assim que narra Ary Rosa, jornalista do Cinearte: 
Dirigindo Cleo é de uma exigência raríssima. E a vi em ação. É muito dedicada no seu trabalho. Dirige com segurança e firmeza. Muda a câmera constantemente de posição, procura, sempre o ângulo mais propício e fotogênico. Escolhe as maneiras bonitas de fotografar. E com ela os operadores tem muito a se cansar...Não lhe dá tréguas. Tem medo, sempre, que as cenas não saiam perfeitas. As refaz mais de uma vez. É caprichosa e dedicada e quer que o público se admire com o seu trabalho, porque trabalha para o público e o quer sempre satisfeito. 
Graças às revistas da época, temos a história toda do filme mudo O Mistério do Dominó Preto (1931), um ótimo filme de mistério, à nossa disposição. A sinopse do filme é a seguinte: a nossa cineasta Cléo de Verberena, interpreta uma moça chamada Cleo, de alta sociedade casada com o Comendador Fernando, vivido por Emilio Dumas, que sempre vive um caso de amor com homens diferentes para seu bel-prazer. Um de seus ex-amantes, Virgilio, vivido por Laes Mac Reni, seu marido na vida real, a encontra na rua quando foi envenenada, dizendo-lhe que morreu por causa de um bilhete e de um dominó preto. Assustado, Virgilio pede ajuda de seu amigo Marcos e os dois vão atrás do mistério, que parece se relacionar ao amante atual de Cleo, o tenente Renato (Rodolpho Mayer) que está noivo. No fim, descobre-se que foi o irmão mais velho da noiva de Renato que matou Cleo envenenada, porque a via como empecilho para a felicidade de sua tão querida irmã.

Aquiles Tartari participou do filme como diretor de fotografia, além de Antonio Medeiros na câmera e Carmo Nacaratto orientando sobre cada cena. 


Fotos de stills do filme O Mistério do Dominó Preto com Cléo e Laes                              Divulgação         

Conta-se, aqui, o enredo completo do filme O Mistério do Dominó Preto (1931), com letreiros feito pelo incrível cartunista Belmonte, porque ele não está mais disponível em nenhum lugar. Nosso leitor Alexandre Myiazato, que trabalha na Cinemateca, nos garante que o filme nunca foi depositado na Cinemateca e permanece perdido.* O que se sabe de fato é que ninguém, nem na Cinemateca nem os parentes de Cleo sabem onde o filme foi parar. 


O único problema era achar investidores dispostos a exibir o filme no circuito de cinema brasileiro. Embora o nicho do cinema seja fechado, inúmeros atores, inclusive famosos, se dispuseram a trabalhar com Cléo e Laís, porque a abertura de um estúdio era sinônimo de comemoração e de muita curiosidade. Infelizmente, nem Cléo e nem Laes sabiam como administrar um estúdio. As despesas estavam se acumulando e apesar de o filme O Mistério do Dominó Preto (1931), ter tido sua estreia no famoso cinema ParaTodos, o dinheiro não estava entrando e o casal teve que vender joias e algumas propriedades para tentar compensar o rombo. Cleo participou de sua primeira peça teatral, com o grupo de teatro Via Láctea, chamado Sorrisos de Mulher, em setembro de 1931, e muitos elogiaram a performance da atriz, que continuou a atuar com o grupo na peça Setas de Um Cupido.


Cinema e música são as minhas adorações! - Cleo, entrevista para a Cinearte em 1931.

Mesmo assim, eles começaram a lucrar um pouco com a alcunha de primeira cineasta mulher da Cléo de Verberena, criando revistas com ela atuando, as famosas fotonovelas. Com as despesas aumentando e o investimento não cobrindo as despesas, Laes começou a ficar cada vez mais desgostoso com a empresa, que agora dependia de Cléo para sobreviver. Ela logo conseguiu um papel no filme do diretor Plinio Ferraz chamado A Canção da Felicidade, em 1931. O filme mudou de nome e passou-se a chamar Canção do Destino - erroneamente, muitos diziam que ela produziria ou dirigiria o filme, mas na verdade, ela seria a estrela. 


Cléo também tinha planejado fazer seu primeiro filme falado, o intitulado Melodia da Saudade, com Laes como protagonista, mas acabou não se concretizando. 


Cleo de Verberena discutindo o roteiro do filme ao lado de Laes e seu filho César e com sua co-estrela
O filme Canção do Destino (1931), que começou a ser gravado no mês de maio de 1931, no entanto, nunca foi concluído. No ano seguinte, em março de 1932, ela resolveu se mudar para o Rio de Janeiro, animada com a possibilidade de conseguir divulgar o filme O Mistério do Dominó Preto na cidade, mudando-se para lá com o filho. Seu marido, Laes, pelo que se sabe, ficou para trás para participar da Revolução Constitucionalista de 1932. Aqui os relatos se divergem: em entrevista, César filho revela que seu pai morreu logo depois da volta da batalha, Rodolfo Melani, seu neto, com quem eu falei, me confirmou a história. No entanto, existe outra versão, a de que possivelmente Laes tenha morrido no Hospício de Juqueri, completamente louco, em 1935 aos 31 anos de idade. 

Novas informações que achei em jornais, no entanto, confirmam que César Melani morreu no dia 10 de maio de 1935 em Franca, São Paulo, participando da Revolução Constitucionalista. * 


Nesse ínterim Cléo de Verberena, que começou a assinar apenas como Cléo Verberena, apareceria no filme Onde a Terra Acaba, do estúdio Cinédia, formado por Ademar Gonzaga, no Rio de Janeiro. Carmen Santos, em foto acima, colaboraria com Cléo no filme, do qual era estrela e produtora, mas de acordo com o jornal Radical do Rio de Janeiro de 1932, ela participou do filme como produtora e não se sabe se ela teve um papel na trama.

Cleo em tour pelo estúdio do Cinedia                                               Divulgação

Cléo Verberena também assinou o roteiro do filme Casa de Cabloco (1931), mas depois disso não participou de mais nada no cinema. Seu marido morreu em 1935, ela vendeu a empresa e nunca mais se envolveu no mundo do cinema, tornando o Rio de Janeiro sua moradia definitiva. Foi lá, aliás, que ela conheceu o cônsul chileno Francisco Landestoy Saint-Jean, nascido em 31 de dezembro de 1898, mas isso apenas vários anos depois, casando-se com ele em 28 de agosto de 1946 (embora em 1944 ele já conste como casado em documentos oficiais)*. F morar em inúmeros países, tanto no Chile quanto na Inglaterra. 

Cléo Verberena adotou o nome Jacira Silveira Landestoy, depois de casada, mas o casamento veio à um fim prematuro em 23 de maio de 1953 com o falecimento de Francisco, quando ele teve um ataque (provavelmente ataque cardíaco) na frente da embaixada do Chile no Brasil. O socorro foi chamado, mas ele morreu antes de ser atendido.


Francisco Landestoy Saint-Jean, segundo marido de Cleo e Laes Reni, seu primeiro
Cléo Verberena, ou melhor, Jacira Martins da Silveira nunca mais se casou, estabeleceu residência definitiva em São Paulo na Rua Arabé, 81 com seu filho César, que se casou, tornou-se advogado e teve dois filhos. Infelizmente César Augusto Melani faleceu em 2012, antes que eu tivesse a chance de conversar com ele. Ele sim poderia cobrir alguns dos buracos que se encontraram na minha pesquisa sobre essa grande mulher. 

Jacira Martins da Silveira morreu aos 68 anos de idade, em São Paulo, em 6 de outubro de 1972. Seus feitos, no entanto, ficaram esquecidos por muito tempo, mas até existe um site chamado Verberenas, em sua homenagem, e inúmeras pessoas que me contataram, por causa do meu primeiro blog A Lentretista, no qual fiz uma matéria sobre Cléo, que queriam saber mais sobre essa maravilhosa cineasta.

Divulgação/Montagem
As poucas entrevistas que fez, incluindo para a revista Cinearte, mostravam à toda hora seus atributos femininos, focando em sua maquiagem, em seu corpo esbelto e em seu sorriso fácil, apesar de um pouco de tristeza nos olhos. Graças à renascença feminista, principalmente no cinema, podemos focar em figuras sensacionais de pioneirismo, como Cléo de Verberena, que foi amontoada pelo tempo, mas nunca esquecida pela sua contribuição incrível ao cinema feminista e ao brasileiro. 

*Correção (21/11/2017) Uma versão anterior do artigo lia-se que a "Cinemateca mantém uma cópia do filme O Mistério do Dominó Preto em seu acervo, mas já entrei em contato com eles e não disponibilizam para acesso ao público." 

* Correção (30/05/2018) A versão posterior a de cima lia-se: "desapareceu durante um incêndio e nunca mais foi encontrado." 

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