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Merle Oberon - a atriz que teve que esconder sua origem

Especialmente na antiga Hollywood era comum astros esconderem sua verdadeira origem para fazerem sucesso. Esse foi o caso com Dona Drake, atriz casada com William Travilla que era negra com pele mais clara e, por isso, fingia ser de origem mexicana para ter maiores oportunidades em Hollywood. 

Outros, apesar de não negarem sua origem, foram obrigados a fazer uma transformação total para se encaixar no status de beleza da época como Rita Hayworth e John Gavin. Por fim, ainda houve casos de astros que se recusaram a 'jogar o jogo' como o caso de Fredi Washington, uma mulher negra de pele mais clara, que estrelou o filme Imitação da Vida (1934). 

Merle Oberon, nascida Estelle Merle O'Brien Thompson, em 19 de fevereiro de 1911, faz parte do primeiro caso. A artista, que foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz por seu papel em O Anjo das Trevas (1936), escondeu durante toda sua vida o fato de ter origem indiana. 
Merle fez questão de esconder sua origem indiana

De acordo com a biografia 'Princess Merle: the romantic life of Merle Oberon', escrita por Charles Higham em 1983, a história de que a atriz teria nascido na Tasmânia, Austrália, em 12 de fevereiro de 1914, foi uma fabricação feita pelo produtor britânico Alexander Korda para esconder que ela havia, na verdade, nascido em Bombaim, na Índia. 

Para entender a vida de Merle, é necessário compreender a conjunção política da época na Índia. Os primeiros navios britânicos chegaram à Índia em 1612, fazendo a troca de produtos manufaturados por matérias-primas como seda, algodão e especiarias. Desde então, o império britânico passou a dominar, pouco a pouco, a região e a Índia passou a ser considerada a "joia mais cara da Coroa".

Focados em desenvolver o país, a colonização começou e britânicos passaram a morar na Índia. Para os europeus, os indianos e asiáticos eram "inferiores" e precisavam de ajuda serem civilizados. Assim, Merle assumir que tinha origem indiana seria acabar com sua carreira nos cinemas antes mesmo de começá-la. Vivien Leigh, por exemplo, nasceu na Índia, mas tinha como provar que ambos seus pais eram britânicos. 

Constance, mãe de Merle, a atriz ao centro, e a avó dela, Charlotte          Princess Merle

No livro de Charles Higham, ele consegue se conectar com Harry Shelby, primeiramente apresentado como primo de Merle. Nesta biografia, informa-se de que Charlotte - de origem Maori, povo nativo da Nova Zelândia, e Sri-Lanka - seria a mãe da artista, que nasceu fruto da união entre ela e o engenheiro mecânico Arthur Terrence O'Brien Thompson. A autobiografia informa que os dois eram um casal e estavam juntos quando Merle nasceu no Hospital St. George na Índia. 

Charles Higham ainda revelou que Arthur fazia avanços em Constance - da antiga união ilegítima de Charlotte com um plantador de chá irlandês, Henry Alfred Selby - e, por isso, Charlotte decidiu deixar a filha mais velha em Pune, uma cidade em Maharashtra, na Índia, no internato Taylor School, ao se mudar para Bombai em outubro de 1910. Merle nasceria meses depois. 

Arthur faleceu em 1914, ao servir pela Inglaterra na I Guerra Mundial, de pneumonia durante a Batalha de Somme. Pelo fato de Charlotte ser enfermeira, ela conseguiu trabalhos na área e continuou a manter sua família - até o retorno de Constance em 1916. Um ano depois, Constance conheceu Antoinette Soares, que a apresentou para o irmão, Alexander Soares. Ela se casou com ele em novembro de 1917 - na mesma época, Charlotte e Merle se mudaram para Calcutá, na Índia. 

Com Alexander, Constance teve os filhos Edna, Douglas, Harry e Stanislaus. 

Fotos de Merle na Índia durante seu tempo de escola                         Princess Merle

Vinte anos depois da publicação do livro, Maree Delofski lançou o documentário 'The Trouble With Merle (2002)', que mostra outra vertente do ocorrido. Desta vez, Harry Shelby exibe uma certidão de nascimento de Merle, no qual consta que ela seria filha de Constance e não de Charlotte. 

Aqui, há duas opções. A primeira: como o livro de Charles afirma que Arthur dava em cima de Constance, então com apenas 13 anos de idade, ele pode ser o pai biológico e, Charlotte, para evitar o escândalo, fingiu que Merle era sua filha - por ser enfermeira e ter conexões no St. George Hospital, essa farsa seria possível. Já a segunda é que Arthur assumiu a paternidade para ajudar Constance e não permitir que Merle fosse registrada sem o nome do pai. 

O documentário, inclusive, apresenta mais uma corrente sobre a origem de Merle. No caso, de que ela seria mesmo da Tasmânia, filha de Lottie Chintock, uma empregada de origem chinesa, que se envolveu com o chefe do hotel Weldborough, em Hobart, na Tasmânia, onde trabalhava, o J.W Thompson. Testemunhas afirmam que a jovem foi para a Índia ou após ser adotada por um militar ou após ser levada por uma família de sobrenome O'Brien sob a permissão de Lottie - essa versão, diferente da origem indiana, não tem comprovação alguma, apesar de uma das entrevistadas dizer ter como provar, porém nunca o faz durante o documentário. 

Merle em visita em Hobart, na Tasmânia, em 1978

Em entrevista para o jornal Okland Tribune, em 1935, Merle diz que ela nasceu em Hobart, na Tâsmania, quando seu pai e mãe visitavam a cunhada dela. O pai dela morreu três meses após seu nascimento e, assim, ela e a mãe continuaram a viver na Tâsmania até Merle completar sete anos de idade. 

Logo depois, a mãe de Oberon aceitou o convite de sua madrinha, Lady Monteith, para morarem com ela em Bombaim, na Índia. As duas ficaram ali por dois anos até morarem com o Capitão Bartley e sua esposa, tios da estrela, em Calcutá. Aos 17 anos, ela foi levada para os EUA pelo tio para uma longa viagem e nunca mais retornou. 

Oberon sempre manteve, em diversas entrevistas, que nasceu na Tasmânia, assim como Errol Flynn e, ao ser indagada, dizia que nunca lembrava com exatidão de sua vida na Austrália. Segundo a historiadora Halley Bond no podcast 'You Must Remember This, Passing for White: Merle Oberon', Merle, afetuosamente apelidada de Queenie, se focou em se 'passar como branca' na adolescência ao treinar seu sotaque britânico. Apesar disso, ela sofria racismo de suas colegas de escola por conta de sua verdadeira origem. 

Merle via o cinema como uma fuga de escape e começou a atuar na Amateur Dramatic Society, na Índia. Um então namorado dela a apresentou para o produtor Rex Ingram e, na França, ela atuou em alguns pequenos filmes até conseguir uma ponta no longa 'Os Amores de Henrique VIII' de Alexander Korda em 1933, como Ana Bolena. Ali, ela chamou atenção de Korda, seu futuro marido, que ajudaria a desenvolver sua carreira. 

Merle Oberon esteve apenas 15 minutos no filme

Para desenvolver sua imagem em Hollywood, Merle precisava mais do que apenas esconder sua origem - sua cor de pele precisava ser mais clara. Assim, ela começou a usar cremes clareadores, que continham a substância tóxica de mercúrio amonizado. Além disso, a maquiagem para sua pele ficar mais clara era usada constantemente. 

Merle Oberon era descrita pelos jornais como exótica, algo que era usado à favor dela. Uma coisa era ser exótica, outra coisa era ser indiana - isso limitaria seus papeis e a colocaria na obscuridade de Hollywood. Para compor ainda mais a farsa, Oberon pediu para pintar um quadro de Charlotte, sua avó, no qual ela era representada, erroneamente, como branca. Quando as duas viajavam juntas, Merle a apresentava como sua empregada e apenas falava hindi com ela. 


Em 1937, no auge de sua carreira após estrelar em 'O Morro dos Ventos Uivantes' e 'O Anjo das Trevas', ela sofreu um terrível acidente de carro. A artista ficou com uma cicatriz acima do olho esquerdo e outro na orelha. Além disso, o impacto de clarear sua pele com cremes tóxicos havia deixado o seu rosto com pontos corroídos e manchados. 

Lucien Ballard, diretor de cinematografia que conheceu a estrela no set de 'Ódio que Mata (1944)', foi responsável por criar uma luz especial, usando um lâmpada pequena, que diminuía a aparência de suas cicatrizes e deixava o tom de sua pele mais uniforme - a luz foi nomeada como 'Obie' em homenagem a atriz. 

Exemplo da 'Obie Light' em 'Ódio que Mata (1944)'

Merle se casou quatro vezes: com Korda até 1945, com Lucien até 1949 e depois com Bruno Pagliai, de 1957 a 1973, com quem adotou os filhos Francesca e Bruno Jr. Nessa época, segundo a historiadora Cassandra Pybus, da Tasmânia, no livro 'Till apples grow on an orange tree', a artista teria feito sua primeira visita no país nos anos 50 após a morte da suposta mãe, Lottie. Outros afirmam que teriam visto um carro preto entrando na casa de Lottie, que era de Oberon. 

Em 1965, durante a promoção de um filme, ela visitaria Hobart, a cidade no qual ela disse ter nascido. John Higham, jornalista do Sidney Morning Herald, demonstrou curiosidade tamanha sobre o nascimento de Merle que ela informou estar doente e voltou para sua mansão no México ao lado do marido, Bruno, e seus herdeiros. A mansão, inclusive, nomeada Ghalál, era completamente branca - talvez uma obsessão do próprio racismo estrutural de Oberon por associar branco com pureza? 
Merle fotografada em Ghálal em 1969, no México

Apenas em 1978, casada com seu último marido, Robert Wolders, que ela finalmente colocou os pés na cidade de Hobart, depois de sua presença no Sammy Awards em Sidney, na Austrália, em outubro daquele mesmo ano. Em entrevista para Charles Higham, o então marido dela diz que se arrependeu amargamente da ideia: 

Eu queria ver o lugar onde ela nasceu. Agora percebo como ela sofreu. Ela ficou cada vez mais nervosa e doente. Ela chorava muito devido a situação. Quando eu falei para irmos ao cemitério procurar a família dela, Merle se recusou. Ela estava tão triste - Robert Wolders. 

Merle e o marido Robert Wolders em 1978

Os dois ficaram no Wrest Point Hotel, em Hobart, e chegaram a viajar de carro para Port Arthur, ponto turístico. Na volta, ela apontou de modo vago para a Residência do Governador: "Foi lá onde dizem que eu nasci". Ainda de acordo com o livro 'In Tasmania: adventures at the end of the world' de Nicholas Shakespeare, ela permaneceu sem dar nenhuma entrevista - apenas abriu uma exceção sem falar sobre suas origens - e pediu privacidade.

Em 13 de outubro de 1978, em uma sexta-feira, ela julgou o Miss Tasmânia no Wrest Room Cabaret e deu o título para a meteorologista Sue Hickey. Três dias depois, ela esteve em uma recepção civil com o prefeito de Hobart e, antes de chegar na Prefeitura, teria confidenciado para Neil Coulson: "Eu acho que é uma má hora para revelar que não nasci na Tasmânia, nasci na Índia". 

Ao chegar na Prefeitura e assinar o livro de recepção dando seu endereço como "Tasmânia e Malibu", Merle desmaiou. Durante seu discurso na cerimônia, ao falar sobre sua infância, ela começou a chorar e saiu do local, conforme confidenciou seu então marido. 

Apesar disso, diversos moradores do local afirmaram lembrar, vividamente, de que ela era de Hobart, revelando dados e fatos supostamente pessoais dela. Em Wrest Point, no começo daquele mesmo ano, havia sido inaugurado o Merle Oberon Theatre - que depois foi renomeado. 

Merle ao lado de Greer Garson e Rosalind Russell em 1964.

Pouco depois de voltar para sua casa, em Malibu, Califórnia, nos EUA, ela teve um infarto do miocárdio. Em 23 de novembro de 1979, logo após a Ação de Graças, Merle faleceu após sofrer um AVC. 

Em seu último filme 'Interval (1973)', no qual ela produziu e estrelou, Merle conta a história de uma mulher que guarda um terrível segredo e foge para tentar se resguardar. Assim como ela fez durante quase toda a sua vida. No longa, ela se apaixonou por Wolders, com quem ficou até sua morte - ele também foi parceiro de Audrey Hepburn e da viúva de Henry Fonda, Shirlee May Adams. 

Durante sua carreira, Merle fez de tudo para esconder quem era e isso a destruiu por dentro. Seu então enteado, Michael Korda, queria divulgar mais sobre sua origem no livro 'Charmed Lives' antes dela falecer e Merle ameaçou processá-lo. Oberson sabia que, em Hollywood, manter sua imagem era tudo e, por isso, não permitiria que alguém acabasse com o que ela construiu. 

Como tudo teria sido se ela não tivesse sido obrigada a esconder quem verdadeiramente era? Essa é uma resposta que nunca teremos. 


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