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A história de amor - e parceria - de Federico Fellini e Giulietta Masina

Seria possível se apaixonar por uma voz? Saber que a pessoa é sua alma gêmea apenas ao ver uma foto dela em uma revista? No caso do cineasta italiano Federico Fellini, a resposta é sim para todas as alternativas. Foi assim que ele conheceu e se casou com a atriz Giulietta Masina - com quem ficou até sua morte em 1993. 

Giulietta é minha melhor amiga, minha companheira, minha conselheira. Eu não saberia o que fazer sem ela. Não apenas agora que estou velho: sempre foi dessa maneira. - Federico em entrevista para a revista Interview, em janeiro de 1994. 

O aspirante à cineasta, que já havia escrito algumas piadas e frases para filmes como 'Na Frente há um Lugar' e 'Quarta Página', estava no início da carreira e trabalhava até como cartunista na revista Marc Aurelio antes de conhecer sua amada. Giulietta, por sua vez, sempre quis ser atriz e, determinada, atuou no teatro e também no rádio. Em junho de 1943, ela conseguiu o papel de Pallina na radionovela 'The Adventures of Cico and Pallina', escrita por Fellini para a rádio Rai dentro do programa Terziglio. 

Federico e Giulietta - namoro rápido, casamento longo

Fellini já havia se interessado pela voz de Giulietta, mas de acordo com o biógrafo Angelo Solmi, o que selou a união fatídica foi uma foto da atriz. Ele teria visto Masina na revista Radiocorriere e decidiu telefoná-la. Já Giulietta discorda! De acordo com a atriz, Fellini a telefonou para pedir uma foto dela já que 'Cico e Pallina' viraria um filme - o que nunca aconteceu. Depois, ele disse que precisava conhecer a "heroína de seu filme antes de morrer"e Masina concordou em jantar com o cineasta. 

Seja como for, Fellini impressionou a pretendente, negativamente, por estar mal vestido ao chegar em um dos restaurantes mais chiques de Roma. Segundo a biografia 'Fellini, a Life de Alpert Hollis', Giulietta comeu pouco e ficou preocupada com os preços, incerta se ele teria dinheiro para pagar a refeição - mas nem era preciso! O cineasta tinha uma populda carteira. O jeito estranho e expansivo dele a agradou e logo começaram a namorar. 

Pressionados pela urgência e incerteza da II Guerra Mundial, os dois ficaram noivos - com Fellini a pedindo em casamento ao enviar dois gansos, um com o cartão escrito 'Fellini' e o outro 'Pallina', com a seguinte nota: "Pallina, você vai se casar comigo? Espero que sim". A atriz e o diretor se casaram em 30 de outubro de 1943 na casa da tia dela, já que um monsenhor vivia no mesmo prédio. A senhora também abriu espaço para abrigar os recém-casados. 

Fellini e Masina em 1957 - a foto favorita de Giulietta dos dois

Giulietta logo ficou grávida, mas infelizmente perdeu o bebê. Não demorou para que ela engravidasse novamente e, em 22 de março de 1945 ela deu à luz Pierfederico, que faleceu apenas duas semanas depois por broncopneumonia. Os médicos afirmaram que Giulietta nunca mais poderia ter filhos. De acordo com a escritora Charlotte Chandler, autora da autobiografia de Fellini, o 'I, Fellini', esse foi um dos maiores lamentos da vida de Giulietta. 

Foi na casa da tia de Giulietta, Giulia Pasqualin, que Federico começou a escrever o roteiro de um de seus maiores filmes: Roma, Cidade Aberta (Roma, Cittá Aberta, 1945), com a direção e ajuda de Roberto Rossellini, que se envolveria com Anna Magnani durante as filmagens. Fellini continuou a escrever histórias para outros cineastas até que chegou a vez dele, em 1950, com o filme Mulheres e Luzes (Luci del varietà) -e quem era uma das estrelas? Giulietta Masina, sua amada esposa. 

Mulheres e Luzes (Luce del varietá, 1950)

Giulietta Masina, Carla del Poggio e Peppino del Fillipo

Federico Fellini já havia ganhado experiência como produtor, assistente de palco e até roteirista em filmes dos amigos Roberto Rossellini, Alberto Lattuada e Riccardo Freda, quando conseguiu dar o primeiro passo como diretor. Mulheres e Luzes (Luce del varietá, 1950) é uma co-direção do cineasta com Lattuada, que decidiu dar uma chance para Fellini provar seu valor como diretor. A esposa de Alberto, Carla del Poggio, é a protagonista. 

O roteiro começou com uma ideia de Alberto, que queria escrever uma história sobre a competição de Miss Itália. Federico, Tulio Pinelli e os outros elevaram a sinopse: em Mulheres e Luzes (Luce del varietá, 1950), Carla vive Liliana, uma vencedora de concurso de beleza que quer uma carreira no teatro e cinema. Enamorada com essa ideia, ela acaba na trupe de atores viajantes e se envolve com o dono, Checco, vivido por Peppino de Filippo. No fim, Lily o troca por um empresário de verdade, enquanto Melina, interpretada por Giulieta, segue fiel à seu amor pelo comediante fracassado. 

Giulietta segue apaixonada por Checco, apesar das traições

Segundo o biógrafo Angelo Solmi, Fellini se inspirou nas histórias de seu amigo Aldo Fabrizi, que tinha uma trupe de atores viajantes, para criar o roteiro do filme. O diretor chegou a afirmar, em algumas entrevistas, que esteve com os artistas em diversas performances e viagens quanto tinha 19 anos de idade, mas o próprio Fabrizi negou tudo! O cineasta era bastante conhecido entre amigos por 'exagerar' a verdade e até mentir. 

Alberto Lattuada e Federico Fellini fundaram a produtora Capitolium Film, com suas respectivas esposas, para arcar com o filme. Lattuada sempre pontuou que Mulheres e Luzes (Luce del varietá, 1950) era mais dele do que do amigo e, em entrevistas posteriores, chegou a afirmar: "Eu inventei Fellini". Massimo Mida, que estava na equipe, revela que Alberto ficou responsável por aspectos técnicos da filmagem, mas Federico estava sempre no set ajudando e contribuindo com ideias. 

Os dois cineastas, no entanto, não souberam administrar o dinheiro da produção e logo ficaram quebrados. A distribuidora que eles escolheram para divulgar o filme também faliu. Alberto e Federico ficaram até os anos 60 pagando as dívidas de Mulheres e Luzes (Luce del varietá, 1950), que foi quando a película ganhou uma nova vida e redestribuição. 

Os críticos eram unânimes: apesar do desequilíbrio de narrativa, Giulietta Masina brilhava! 
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Abismo de um Sonho (Lo sceicco bianco, 1952)

Giulietta em um dos primeiros filmes de seu marido

Federico Fellini, apesar da primeira experiência caótica como diretor, estava obstinado em se firmar na profissão. O seu próximo tema, com a ajuda do roteirista Tulio Pinelli, seria as fotonovelas - bastante populares na Itália nos anos 50. Michelangelo Antoniani, que produziu um documentário sobre o assunto, o 'The Loving Lie', propôs um filme nessa temática para o produtor Carlo Ponti. Ele, por sua vez, foi atrás de Fellini e Pinelli para escreverem a história - a ideia inicial era Antoniani dirigir a película. 

O cineasta e o amigo desenvolveram a história, mas não agradaram nem Ponti e nem Antoniani. Fellini, certo de que o roteiro valia a pena, foi atrás de produtores para ajudá-lo nessa aventura. Luigi Rovere finalmente aceitou! Em Abismo de um Sonho (Lo sceicco bianco, 1952) os recém-casados Wanda e Ivan, vividos por Brunella Bovo e Leopoldo Trieste, vão até Roma para uma audiência com o Papa. Lá, Wanda tenta conhecer o ator do Sheik Branco, seu personagem favorito das fotonovelas [quadrinhos de fotografia que contavam histórias de romance, drama e etc.] vivido por Alberto Sodi. No fim, eles acabam envolvidos pela lúxuria e perigos da cidade. 

Giulietta tem um pequeno papel como a prostituta Cabíria, que ela reprisaria em maior escala em Noites de Cabíria (Le notti di Cabiria, 1957). 

Alberto Sodi em um de seus grandes destaques
    
A maioria dos produtores não queria Sodi no papel do Sheik Branco, porque ele não era considerado popular entre a audiência. Apesar disso, Fellini o manteve na obra cinematográfica, mas teve que dispensar Peppino de Filippo no papel do marido, Ivan. Abismo de um Sonho (Lo sceicco bianco, 1952) foi selecionado para o Festival de Cannes em 1952, mas dispensado no último minuto. Em Veneza, o filme foi destruído por críticos, mas Fellini manteve a cabeça erguida. 

Assim como em seu primeiro filme, Federico enfrentou desafios com a distribuidora, a falta de arrecadação de bilheteria e processos legais. De acordo com o livro 'Fellini, a Life', o cineasta culpou a ironia do filme pela má recepção dos italianos, mas se manteve firme a sua visão. 

Apesar dos altos e baixos, foi a partir dessa película que Fellini firmou a parceria com o músico Nino Rota, os escritores Tulio Pinelli, Ennio Flaiano, o câmera Otello Martelli e, mais importante, a esposa Giulietta Masina. 
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A Estrada da Vida (La Strada, 1954)

Giulietta em cena de A Estrada, seu primeiro papel como protagonista 

Aos 33 anos de idade, Giulietta Masina conseguiu sua primeira protagonista no filme A Estrada da Vida (La Strada, 1954). Fellini queria a esposa, de qualquer jeito, como a estrela principal, mas teve que lutar contra o novo produtor Lorenzo Pegoraro para manter sua ideia. Antes lançou o Os Boas Vidas (I vitelloni, 1953) - um de seus maiores sucessos. 

Ninguém queria Giulietta como a estrela da película, já que ela não era tão conhecida e nem tinha a beleza em voga daquela época. Fellini, no entanto, estava determinado e conseguiu o apoio de Carlo Ponti e Dino de Laurentiis como produtores, mas, no início, eles queriam Silvana Magano e Burt Lancaster nos papeis. Anthony Quinn, convencido a participar do filme por Roberto Rossellini e a esposa, Ingrid Bergman, foi escalado para um papel determinante, após Federico conhecê-lo graças à esposa - ela atuava em um pequeno filme com o astro. 
Ele [Federico] me escalou para o filme em um tempo quando as maggiorate [mulheres voluptuosas] estavam na moda. Bem, eu era pequena, magra. Os produtores sabiam que eu era boa pelo teatro, mas achavam que 'La Strada' era um filme dramático, ciumento e por ai vai. Por isso, não estavam certos de mim por ser pequenina e frágil. Mas eu ganhei e sobrevivi. - Giulietta em entrevista ao New York Times, 1986. 
Federico Fellini com a esposa em A Estrada da Vida (La Strada, 1954)

Em A Estrada da Vida (La Strada, 1954), Giulietta interpreta Gelsomina, uma jovem que é vendida pela mãe para um lutador exibicionista chamado Zampáno, vivido por Anthony Quinn. A moça é amada e maltratada por ele, na mesma medida, e se apresenta como palhaça ao seu lado. Tudo muda quando eles se juntam à um circo e Gelsomina conhece novas pessoas e diferentes realidades, mas sempre fiel ao seu mestre. 

Os bastidores do filme, mais uma vez, foram caóticos! Federico não tinha orçamento o suficiente e as condições eram precárias - Anthony Quinn, por exemplo, se divida entre essa película e A Invasão dos Bárbaros (Átila, 1954). Federico exigia demais da própria esposa e ficava bravo quando ela não entendia sua visão. Giulietta, por sua vez, tinha muito medo de errar: "Você pode imaginar minha crise? Eu pensei que tinha arruínado Federico!". 

A Estrada da Vida (La Strada, 1954) fez um grande sucesso na Itália, apesar de algumas críticas mistas, e foi exibido no Festival de Veneza daquele mesmo ano. Logo depois, o filme ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Giulietta ficou marcada como 'little waif', ou seja, o arquétipo da mulher frágil e delicada. Com o êxito, o casal saiu da casa da tia de Giulietta e se mudou para um apartamento próprio. 
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A Trapaça (Il bidone, 1955)

Giulietta em um papel bastante dramático

O casal não demorou para se unir de novo em A Trapaça (Il bidone, 1955) após o sucesso de A Estrada da Vida (La Strada, 1954). Dessa vez, o papel de Giulietta não era o principal e a pressão de tornar a obra um sucesso foi um pouco aliviada. Em entrevista durante o Festival de Cannes em maio de 1955, a atriz diz que o filme teria "cenas dramáticas e engraçadas" e dá a entender que ela e Fellini já estavam trabalhando em Noites de Cabíria (Le notti di Cabiria, 1957). 

Em A Trapaça (Il bidone, 1955), a esposa de Fellini interpreta Iris, uma mulher casada com Picaso, vivido por Richard Basheart - que teve um papel em A Estrada da Vida (La Strada, 1954). Ela não faz ideia que o marido não é um artista e sim um golpista. Ele tenta esconder sua vida dupla da família enquanto se une aos amigos Augusto (Broderick Crawford) e Roberto (Franco Fabrizi) para se aproveitar da ingenuidade de outras pessoas. 

O neorrealismo de Fellini à todo o vapor

O filme, apesar de todo o empenho de Fellini e o elenco, foi um fracasso de bilheteria e considerada uma de suas obras menos inspiradas. Dez anos depois, A Trapaça (Il bidone, 1955) seria revisto e devidamente valorizado. Em entrevista para a biógrafa Charlotte Chandler, o diretor revelou que teve que cortar o filme da duração original de 2h30 para apenas pouco mais de 1h30 para satisfazer os produtores e a distribuidora. Para Fellini, foi isso que prejudicou o filme: 
Pessoalmente, para mim, foi muito difícil cortar tanto da performance de Giulietta. Ela estava tão bem, especialmente nas partes que cortei. Eu espero que ela tenha compreendido, afinal é minha esposa. Mas ela não foi compreensiva porque ela também é uma atriz. Eu acredito que a recompensei no meu próximo filme Noites de Cabíria (Le notti di Cabiria, 1957). - Federico para o livro I, Fellini. 
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Noites de Cabíria (Le notti di Cabiria, 1957)

Um dos maiores papeis da carreira de Giulietta

A personagem Cabíria apareceu pela primeira vez em uma ponta no filme Abismo de um Sonho (Lo sceicco bianco, 1952). Fellini, no entanto, só a desenvolveu durante as gravações de A Trapaça (Il bidone, 1955) ao conhecer uma prostituta chamada Wanda, que vagava pela cidade. 

Ele ofereceu o roteiro para diversos produtores, mas apenas Dino de Laurentiis concordou com os termos. Giulietta, por sua vez, ficou furiosa com o acordo de cinco filmes, sendo que se um deles fosse mal de bilheteria, o produtor ficaria com os 25% de bônus do diretor. Fellini, no entanto, estava apenas interessado em lançar suas obras. 

Em Noites de Cabíria (Le notti di Cabiria, 1957), Giulietta interpreta Cabíria, uma prostituta que sonha com o verdadeiro amor. Uma noite, ela acaba sendo contratada por um ator famoso e fica fascinada com as histórias que ele conta. Os dois vivem diversas aventuras com a jovem tendo a certeza que tudo acabará de manhã. Fellini se inspirou em Charlie Chaplin para criar a personagem e, a partir dai, Giulietta ficou conhecida como a versão feminina de Chaplin, a charlot. Pier Paolo Pasolini ficou responsável pelos diálogos e logo se tornou um cineasta. 

Giuietta, Federico e outros atores no set de filmagens 

Giulietta acabou fraturando o joelho e as gravações se estenderam além do esperado, mas essa não foi a única surpresa na vida da atriz. Foi em março de 1957 que Fellini arranjou uma amante, após envolvimento com Lea Giacomini: Anna Giovannini, quatro anos mais velha, voluptuosa, e que trabalhava em uma farmácia. Os dois se encontravam furtivamente e, nos anos 70, até foram fotografados por uma revista italiana, mas o escândalo foi evitado. 

Segundo o livro Federico Fellini: his life and work de Tullio Kezich, Giulietta sabia do affair, mas preferia fingir ingenuidade. Anna tinha uma filha chamada Patrizia, que foi apontada como herdeira de Fellini, mas ela nasceu em 1952, antes dela conhecer o diretor. Para o livro I, Fellini, o cineasta deixou clara sua visão sobre sexo fora do casamento:
Homens e mulheres tem atitudes diferentes sobre sexo fora do casamento. A mulher acha que se você faz sexo com outra, você está indo embora com sua alma. Um homem sabe que não está partindo e sim apenas emprestando um pouco. Mas você não pode dizer a sua esposa que alguém o pegou emprestado por uma noite. A ideia de estar casado é romântica para uma mulher e aterrorizante para um homem (...) Monogamia não é natural para um homem. Fisicamente, ele não é um animal monogâmico. 
Em março de 1957, Noites de Cabíria (Le notti di Cabiria, 1957) estava pronto para ser lançado. O filme estrelou no Festival de Cannes e foi um sucesso estrondoso. Caetano Veloso descreveu lindamente o filme na canção 'Giulietta Massina'. Na sequência, ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1958 e, nesse intérim, Giulietta e Federico colocaram uma pausa na parceria entre eles. Fellini ficou ocupado com A Doce Vida (La Dolce Vita, 1960)8½ (idem, 1963) enquanto Giulietta estrelou em Fortunella (idem, 1958) e Inferno na Cidade (Nella città l'inferno, 1959)
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Julieta dos Espíritos (Giulietta degli spiriti, 1965)

Giulietta em um dos filmes mais transcedentais de Fellini 

Giulietta, após um hiato de quase dez anos, se reuniu novamente com seu marido para o filme Julieta dos Espíritos (Giulietta degli spiriti, 1965). Ironicamente, ela atuava dessa vez com uma das amantes do marido, Sandra Milo. O affair começou nos bastidores de  8½ (idem, 1963) e teria durado por 17 anos. Em entrevista para o programa Storie Italiane, ela acredita que Giulietta nunca soube do romance: "Eu acho que ela nunca soube. Quando eu trabalhava fora da Itália, ela sempre me telefonava e me chamava de 'irmãzinha'. Eu nunca me senti culpada". 

Apesar disso, em Julieta dos Espíritos (Giulietta degli spiriti, 1965), a atriz interpreta uma mulher, chamada Giulietta, que descobre que seu marido, Giorgio (Mario Pisu) tem uma amante, interpretada pela própria Sandra. O impacto de descobrir que foi traída é tão grande que ela começa a ter contato e experiências sobrenaturais. Mas será que o roteiro desse filme foi uma mera coincidência? Giulietta, ao que tudo indica, sabia dos romances extraconjugais do marido, mas se mantinha resignada. 

Em entrevista para a Playboy publicada em 1966, Federico Fellini voltou a falar sobre relações extraconjugais e como o tema de Julieta dos Espíritos (Giulietta degli spiriti, 1965) seria a reexaminação do casamento: "O homem precisa de relações mais modernas. Tanto extranconjugal quando pré-conjugal. O homem não é monogâmico. O casamento é uma tirania e mortificação de seus instintos naturais". 

Giulietta e Sandra - divididas pelo mesmo homem na vida real e no filme

Segundo o livro 'Fellini: A Life', as brigas entre Giulietta e Federico eram constantes no set de filmagens, já que ele queria 'apagar' dela todas as outras personagens que já havia feito. A atriz, no entanto, batia o pé quando achava que algo não estava certo. O escritor John Gruen escutou um dos membros da equipe dizer que Julieta dos Espíritos (Giulietta degli spiriti, 1965) exibia todos os defeitos do casamento dos dois, mas Federico negou: "É o filme menos autobiográfico de toda a minha carreira. Minha esposa apenas está nele". 

Fellini decidiu que usaria e abusaria da cor, certo de que um filme transcedental como esse merecia explosões de cores para sua narrativa. As críticas sobre Julieta dos Espíritos (Giulietta degli spiriti, 1965) não foram das mais positivas, mas a película foi um sucesso de bilheteria, em especial na Itália. E isso agradou o cineasta. Giulietta ganhou os prêmios de David di Donatello e The Nastro d'Argento por sua atuação brilhante. 

Em entrevista em 1991, após um de seus últimos papeis no cinema, Giulietta afirma que nunca ligou para os casos de Fellini: "Ele sempre volta para mim no final"

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Ginger e Fred (idem, 1986) 

Marcello Mastroianni e Giulietta Masina como Fred Astaire e Ginger Rogers

Federico Fellini voltaria a fazer sucesso internacional com Amarcord (idem, 1973) e Giulietta se concentrou em outros projetos. Os dois firmaram a parceria, pela última vez, em 1986 graças à um pedido da atriz. Masina foi convidada pelo canal de televisão Rai para atuar em uma série antológica, representando seis mulheres diferentes. Para o segmento de Fellini, com o produtor Alberto Grimaldi, ele desenvolveu a história de Ginger, uma antiga dançarina de vaudeville que imitava Ginger Rogers e Fred Astaire com o seu parceiro.  

Marcello Mastroianni, que se tornou um dos atores favoritos de Federico no final dos anos 50, concordou em atuar como Fred. A partir dai, a ideia que seria apenas um episódio se tornou um longa-metragem intitulado Ginger e Fred (idem, 1986). Nele, Giulietta e Marcello interpretam Amelia, a Ginger, e Pippo, o Fred que, bem mais velhos, se reúnem para dançar em um programa de televisão para o Natal.

Em entrevista para o The New York Times, Giulietta revela que queria dançar melhor no filme, mas foi impedida pelo marido: "Eu amo dançar desde criança e por isso me diverti tanto no filme. Eu queria dançar melhor, mas Federico não deixou porque, com Marcello, ele queria que a gente respirasse fundo. Ele queria que errássemos". 

Federico e a esposa no set de filmagens de Ginger e Fred (idem, 1986)

Ginger e Fred (idem, 1986) foi recebido de forma mista pelos críticos, em especial nos EUA, já que o filme foi considerado uma sátira da televisão dos ano 80. Isso porque Fellini exibiu os bastidores da televisão como um lugar vulgar, caótico e que apenas visava o lucro - acima até do bom entretenimento. 

Masina defendeu o marido das acusações da mídia: "O filme não é 'duro' com a televisão. É irônico. O filme não é sujo. Você tem que ver os erros da sociedade, mas com um sorriso. Sem qualquer crueldade". 

Em março de 1986, a verdadeira Ginger Rogers entrou com um processo de US$8 milhões para impedir a exibição do filme de Fellini. De acordo com a estrela, Ginger e Fred (idem, 1986) era uma maneira ilegal do cineasta e do produtor de tirar vantagem da fama dela e de Fred Astaire. Além disso, o filme dá a entender que os dois foram "amantes" e os mostra de uma maneira "decadente". A estrela perdeu, mas criou a lei 'Rogers' Test' -para proteger o uso de marcas registradas. 
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Marcello, Giulietta e Fellini no Oscar 1993

Após Ginger e Fred (idem, 1986), Giulietta e Fellini continuaram a trabalhar em outros filmes, mas nunca mais em parceria. O laço entre eles era tão forte, no entanto, que ela começou a adoecer assim que Fellini apresentou os primeiros problemas de saúde. Dois meses depois da aparição no Oscar em 1993, o diretor sofreu um derrame cerebral. Na mesma época, em setembro, Giulietta descobriu que tinha um câncer no pulmão e ficou internada. Os dois, apesar da doença, faziam questão de se ver: "É uma viagem de amor. Nós precisávamos nos abraçar, ficar juntos por um tempo". 

Segundo o jornal La Reppublica, em 1993, Giulietta planejou um jantar em sua casa na via Margutta para celebrar os 50 anos de casamento com Fellini. Para os convites, ela reemprimiu o convite de casamento desenhado a mão pelo marido - que sempre sonhou em vê-la usando um vestido branco. Na época do casamento, ela usava um conjunto azul com dois passarinhos bordados. Fellini morreu no dia seguinte, em 31 de outubro de 1993 devido à um ataque cardíaco. 
"[Nosso casamento] era uma comunhão de almas, a total fusão de duas personalidades que complementavam uma a outra", afirmou Giulietta para o jornal La Reppublica, lamentando não ter tido filhos com Fellini: "O tempo foi muito curto, mas com muito tempo perdido porque, você sabe, se você tem um filho você realmente não perdeu nada, mas eu não tenho". 
Federico e sua amada Giulietta - juntos até o fim

Em novembro, Masina foi internada na clínica Colombus, em Roma, para tratar a doença mas, para os jornais, ela se recuperava apenas de problemas circulatórios e perda de peso, mantendo em segredo seu verdadeiro diagnóstico. Em 22 de março de 1994, quase cinco meses após Fellini, Giulietta faleceu - de acordo com parentes, ela nunca soube da gravidade da doença.  

Giulietta foi enterrada no dia 24 de março de 1994, com o vestido que ela usou no Oscar em 1993, com uma rosa e uma foto de Fellini. Tanto ela quanto o marido, e o filho Pierfederico, foram enterrados em uma tumba no Cemitério Rimini, na Itália. Logo depois, o local ganhou a escultura de uma vela e um banco, idealizado pelo artista Arnaldo Pomodoro, que se inspirou no filme do cineasta E la nave va (idem, 1983)

Ao receber seu Oscar Honorário em 1993, entregue por Sophia Loren e Marcello Mastroianni, Fellini se emocionou ao ver a esposa chorando. Ele pediu: "Obrigado minha querida Giulietta e por favor, pare de chorar. Obrigado". Juntos até o fim, Masina e Fellini foram um dos casais mais amados da Itália e, o mais importante, amavam um ao outro. 

O convite de casamento de Giulietta e Federico, desenhado por ele, em 1943


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