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O desespero mortal de Sybille Schmitz em Veronika Voss (1982)

Sybille Schmitz, atriz de descendência alemã, não tinha uma aparência considerada ariana pura. Por causa de seus olhos e cabelos escuros, fora dos ideais de beleza vigentes durante a ascensão do nazismo, ela ficou renegada a papeis exóticos e de estrangeiras misteriosas. No entanto, por ter atuado ativamente na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial sob a UFA, Schmitz viu as ofertas de trabalho ficarem cada vez mais escassas após o termino da batalha.

O que sempre foi inegável, contudo, era a capacidade da atriz alemã de dominar qualquer cena em que estivesse, com qualquer ator que fosse. Dona de um visual chique e poderoso, à la Marlene Dietrich, Sybille nasceu para as câmeras - mas infelizmente ficou longe delas por um empecilho maior e mais perigoso: o vício em drogas, bebidas e remédios para dormir.
Sybille Scmitz é uma das personalidades mais interessantes do cinema alemão...com uma mágica, tão mística quanto o poder das ervas que Maria juntou sob a luz da lua [no filme Fährmann Maria, 1936], a sua fineza, sua suavidade se foi; ela se tornou uma jovem garota misteriosa cujo amor era mais convincente do que a morte.  - Resenha sobre a performance da atriz no filme Fährmann Maria (idem, 1936).

Após uma longa e extensa busca sobre a atriz - não existe muitas informações concretas e com referências sólidas sobre ela na web - encontrei o documentário intitulado Dance With Death - The UFA Star Sybille Schmitz, presente no DVD BRD Trilogy com três famosos filmes de Rainer Werner Fassbinder: O Casamento de Maria Braün, Lola e Veronika Voss (este último baseado na vida de Schmitz) que conseguiu preencher inúmeras lacunas de pesquisa sobre a vida dessa tão influente diva do cinema.

Sybille era uma das maiores atrizes do cinema alemão 
Anna Maria Christine Sybille Schmitz nasceu em 2 de dezembro de 1909 na vila de Düren, perto da cidade de Colônia, na Alemanha. A mais velha de cinco crianças, ela foi criada em uma casa anexada ao lado da padaria da família, a Schmitz Bakery. De acordo com o documentário sobre a atriz, o Dance With Death, os pais de Schmitz eram ricos e muito bem estabilizados na sociedade da época.

A mãe de Sybille era extremamente religiosa e colocou suas duas filhas mais velhas, a futura atriz e sua irmã Christel, aos 10 anos de idade, para estudarem no mesmo internato franciscano que ela estudou em Lar am Main. Desde pequena, no entanto, Sybille queria ser uma atriz e lutava por esse sonho, mesmo que sua família conservadora não visse com bons olhos esse desejo.

Após estudar por um breve período na escola de atuação da famosa Louise Dumont, localizada em Düsseldorf, Sybille partiu para Berlim em 1927 com uma carta de recomendação da grande atriz e mentora. Aos 17 anos de idade fez uma audição perante Max Reinhardt no Teatro Deutsches e ele a escalou como Titania em Sonho de Uma Noite de Verão (A Midsummer Night's Dream), ganhando um contrato de três anos com a companhia.

Em 1928, depois de um longo ano de trabalho árduo com a Companhia de atores de Max Reinhardt, Sybille ganhou seu primeiro papel em um filme: Freie Fahrt (Full Speed Ahead: A Film of Awakened Human Rights) (em tradução livre À Todo o Vapor: Um Filme sobre o Despertar dos Direitos Humanos), uma clara propaganda para o Partido Social-Democrata da Alemanha. O papel de Sybille era de uma mulher grávida que trabalhava sem descanso e morreu por isso. Ela recebeu alta aclamação dos críticos por seu papel.

Sybille quando criança e à direita os seus pais                                Fotos de Dance With Death
Logo depois ela voltou à se focar no teatro e estrelou uma peça intitulada The Criminals ao lado de Gustaf Grundges e Hans Albers. Com 111 performances, ela era a nova queridinha da imprensa de Berlim. Navegando muito bem por todo esse sucesso, Sybille se focou em seu próximo filme intitulado Diário de Uma Garota Perdida (Tagebuch einer Verlorenen, 1929), em um pequeno papel ao lado da incrível Louise Brooks. Sybille interpretava uma empregada que havia sido violentada, ficado grávida e depois decidido tirar sua própria vida.

Com performances dramáticas e surpreendentes, ela chamou a atenção do cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer que a importou da Alemanha para participar de seu filme O Vampiro (Vampyr, 1932) como Leóne, uma jovem que é visitada por um vampiro todas as noites e pouco a pouco se torna uma também. Por causa deste filme, o escritor da série de livros Caçador de Vampiros D (Vampire Hunter D), nomeou uma de suas personagens com seu nome, em forma de homenagem.

O Vampiro (Vampyr, 1932) foi um fracasso de bilheteria (e foi regravado para se tornar falado), embora tenha se tornado posteriormente um clássico cult. Sybille, no entanto, impressionou mais uma vez com sua performance e recebeu uma oferta da UFA (Universum Film Aktien Gesellschaft), o maior estúdio cinematográfico da Alemanha, para ter um contrato exclusivo com eles.

Seu primeiro filme sob oferta da UFA foi o filme F.P.1 antwortet nicht (F.P.1 Doesn't Answer, 1931) no qual ela teve seu primeiro papel como protagonista. Com os cabelos louros para atender ao ideal ariano de beleza, a película foi baseada no livro F.P.1 de Curt Siodmak e a atriz se tornou ali, definitivamente, um grande sucesso: sua personagem era glamourosa, usava roupas incríveis, além de ser requintada e bela - com pose de estrela.

As faces (e olhares) de Sybille: em 1928, 1929, 1932 e como estrela poderosa da UFA
Sybille tinha finalmente atingido à fama e graças ao seu contrato com a UFA estava ganhando o mesmo do que as grandes estrelas da sua época: entre 1934 a 1935 ela interpretou a protagonista ou um papel de destaque em 10 filmes, todos se apoiando em sua persona de mulher misteriosa e melancólica: o loiro definitivamente não combinava com Schmitz e foi deixado de fora- o cabelo escuro lhe dava um ar exótico e contrastante às mocinhas das histórias.

Após esse período interpretando personagens mais superficiais, Sybille se juntou novamente com Frank Wisbar em 1936 para o filme Fährmann Maria, uma peça fincada no expressionismo alemão, ou seja, focado em como os diretores viam o mundo, de uma forma idílica e com cenários muito ricos e lúdicos. É nele que Sybille tem uma dança em forma de transe com a própria Morte! Durante todo o filme, como ilustra seu documentário Dance With Death, o cineasta se foca no rosto de Sybille em frames iluminados e serenos - fazendo jus à toda sua beleza e expressivos olhos.

O filme, infelizmente, foi completamente rejeitado por Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda da Alemanha entre 1933 a 1945, afirmando que a beleza "escura" de Schimtz não representava a pureza da raça alemã. Naquele período, Hitler e seus assessores de governo já se focavam no ideal de raça (loiro, olhos claros) enquanto ostracizavam e matavam ciganos, negros, deficientes e judeus. Para eles, tudo que estava fora do ideal não poderia ser exaltado - nem mesmo a grande estrela da UFA, Sybille Schmitz.

Apesar de seu grande sucesso nas telonas, a talentosa morena se sentia extremamente insegura e afogava suas mágoas em bebidas, drogas e sexo. De acordo com o livro Frank Wisbar: The Director of Ferryman Maria, from Germany to America and Back Por Henry Nicolella ela aproveitava a vida noturna de Berlim e teve relacionamentos com ambos os sexos. Seu lado selvagem também transpareceu quando em uma festa quando Sybille mandou um telegrama para a principal caridade Nazista, a Winter Relief Program, sugerindo que o chefe da organização "levasse mulheres congelando para a cama". Por causa disso, ela recebeu uma visita da Gestapo e um alerta para tomar mais cuidado.

Em 1937, ela começou a perceber um declínio em sua carreira e não demorou muito para que ela não estrelasse em mais nenhuma película importante. A atriz afirmou que foi por ter recusado avanços sexuais de Goebbels. A verdade mais honesta, entretanto, é que ela simplesmente não era o tipo de rosto que a Alemanha queria usar para enaltecer seus ideais nazistas e de supremacia racial.

Sybille Schmitz em Fährmann Maria (1936)
Seu próximo filme de destaque foi apenas em 1938 com o intitulado Der Tanz auf dem Vulkan (Dance on The Volcano) e até parece que foi feito como provocação para o odiado Goebbels: a película era sobre uma rebelião de um povo contra um odiado regime. Com os papeis ficando cada vez mais escassos, em 1940 Sybille se casou com o cineasta Harald G. Petersson, esperando, em parte, que ele pudesse ajudar sua carreira.
Eu não estou mais no topo. Eu estou bem no fundo. - Sybille sobre sua carreira na época da II Guerra Mundial - renegada a fazer filmes de propaganda nazista. 
Apenas um filme seu durante a II Guerra Mundial se sobressai: seu papel no épico Titanic (idem, 1943) no qual os alemães culpavam os britânicos por esse desastre - e assim os representando como os malvados da história e da batalha que estava acontecendo. Seu papel de baronesa no filme não era o da alemã boa, mais uma vez mostrando como limitada Sybille estava por causa de seu visual e do nazismo. Titanic, o filme mais caro da história do país na época e aprovado por Goebbels, acabou nunca sendo exibido na Alemanha, pois foi considerado, posteriormente pelo próprio ministro, que as cenas de pânico era muito potentes e poderiam causar pânico. A película, no entanto, fez muito sucesso nos países então ocupados pelos nazistas.

Durante a maior parte da guerra, Sybille e seu marido se refugiaram em Krimml, na Aústria. Supostamente, Harald tinha fortes ligações com a Resistência contra os nazistas e Sybille também havia afirmado que o casal tinha algumas correspondências com conspiradores que planejavam matar Hitler em 1944. Com o fim da guerra, Sybille e Harald se mudaram novamente para Berlim e continuaram a colaborar em filmes até o fim do casamento em 1950.

Curiosamente, um de seus primeiros papeis pós-guerra foi interpretar uma mulher judia que havia sido feita de prisioneira pela Gestapo em Zwischen gestern und morgen (1947) e em Die letzte Nacht (1949) ela interpretava uma mulher à favor da Resistência.

Sybille, com uma péssima peruca, aos 34 anos no épico Titanic
Na vida pessoal, com o fim do casamento, em parte por drogas e álcool e por Sybille tê-lo traído com a atriz e dona de teatro Beate Von Molo, Sybille estava mais deprimida do que nunca: ela se afundou ainda mais no álcool e tentou se matar inúmeras vezes.

Na quarta vez em que ela tentou se matar, Sybille foi internada em uma clínica psiquiatra que lhe deu o seguinte diagnóstico: transtorno de personalidade esquizoide, sociopatia e vício. Nos anos 50, no entanto, ela trabalhou em mais seis filmes e foi considerada pelos seus colegas como uma profissional muito disciplinada. O problema real dela era quando as câmeras paravam de rolar.
Eu nunca pensei que ela estivesse bebendo ou que estava tendo problemas pessoais. Ela tinha uma confiança e tinha uma grande presença. Ela era maravilhosa com todos e fazia tudo que pedíamos. Ela era completamente disciplinada e todos nós gostávamos dela. - Willy Egger, produtor de Illusion in Moll (1952) sobre Sybille no documentário Dance With Death
Não obstante, a esperança de Sybille de conseguir uma carreira pós-guerra nunca se realizou. Isso porque o público queria atrizes mais novas - e que não lhe lembrassem do terrível período nazista. Seu último papel foi no filme, hoje considerado perdido, Das Haus an der Küste (1954), no qual, ironicamente, sua personagem morre. Uma despedida macabra e premonitória de Sybille nos cinemas.

Sybille no filme Illusion in Moll de 1952
Sybille Schmitz, que outrora foi uma das grandes estrelas da Alemanha, faleceu sozinha em um quarto imundo em 13 de abril de 1955, com apenas 45 anos de idade, com uma overdose de remédios para dormir. No ano anterior à sua morte, ela havia se tornado viciada em remédios para dor e estava sem dinheiro, tendo que vender roupas e joias para sobreviver. Tudo aconteceu após o encerramento de seu último filme, no qual começou a sofrer de neuralgia do nervo da face e uma terrível erupção cutânea.

Aí entra a dra. Ursula Ursula Mortiz - e a empregada de Sybille, Klara Schweikhardt - que se aproveitaram da vulnerabilidade da atriz. As duas, de acordo com a biografia da atriz Schöner als der Tod.: Das Leben der Sybille Schmitz de Friedemann Beyer, controlavam toda a vida de Sybille. Logo, Ursula fez com que ela lhe desse posse de sua casa e com que Sybille se mudasse para sua clínica em Munique. Além do mais, viciou-a no remédio chamado oxicodona, ou seja, morfina, vendendo-lhe por um alto preço e, assim, resultando em sua morte por overdose de remédios para dormir.

Isso porque, quando Schmitz não tinha mais dinheiro para pagar a médica, a mesma sugeriu que ela desocupasse a clínica e a ex-estrela da UFA o fez da pior forma possível. A atriz e amiga Olga Tschechowa lhe ofereceu um tratamento de graça em sua clínica, mas Sybille recusou, considerando que não merecia ajuda.

Um ano depois, Moritz foi indiciada por transgredir leis de prescrição de remédios para benefício próprio, graças ao esforço da atriz Henriette von Spiedel que se internou na clínica e investigou a médica já que outros dois pacientes dela haviam morrido de forma parecida à de Sybille - ela havia prescrito 723 narcóticos em menos de três anos em sua clínica. Paul Demmler, um dos inspetores de saúde defenderam Ursula e por isso, infelizmente, a dra. Mortiz foi sentenciada à apenas 4 meses na prisão.

Acima, frame do filme Veronika Voss, baseado em Sybille Schmitz
Depois de todo o escândalo dos tabloides nos anos 50, a história de Sybille caiu no esquecimento até que ela foi relembrada por um diretor de muito sucesso, Rainer Werner Fassbinder, que com grande filmes em seu currículo como O Casamento de Maria Braün (1978) e Lola (1981), lembrou em um lampejo da glamourosa atriz e queria que ela interpretasse a mãe no filme As Lágrimas Amargas de Petra von Kant de 1972. Quando soube do destino trágico dela, ele pesquisou sobre Sybille, já que em suas palavras: "ninguém sabia exatamente sobre o seu destino" e assim começou a criar o roteiro de uma de suas obras-primas, O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1982).

O primeiro roteiro para o filme foi esboçado em maio de 1981, ainda com o título de Sybille Schmitz, e tinha uma história um tanto diferente: o jornalista descobria sobre a história fantástica da atriz depois que ela havia falecido e tentava de todos os modos preencher as lacunas e trazer justiça à ela, enquanto queria prender a terrível doutora responsável por sua morte.

No filme lançado oficialmente, conta-se a história de Veronika Voss, interpretada por Rosel Zech, uma ex-atriz da UFA que chama a atenção de um jovem jornalista esportivo chamado Robert Krohn, vivido por Hilmar Thate, quando ele a vê em um de seus filmes. Os dois se encontram em uma estação de trem e logo Krohn descobre que ela está sendo mantida em condições terríveis pela dra. Katz (Annemarie Düringer), que continua a alimentar o vício de morfina da atriz. Veronika ainda sonha em uma volta triunfal para o cinema, mas seu amigo jornalista se preocupa com o declínio de sua nova amiga.

Fassbinder ao lado de sua Veronika Voss: Rosel Kech
Claramente inspirado em O Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), Rainer Werner Fassbinder passou O Desespero de Veronika Voss (1982) na frente da produção de Kokain, que acabou nunca sendo lançado. Filmado todo em preto e branco, que de acordo com o cineasta em entrevista replicada no site Criterion, eram "as cores mais bonitas do cinema", Veronika Voss estreou  no Festival de Cinema Internacional de Berlim em 18 de fevereiro de 1982 e por este filme, Fassbinder recebeu o Urso de Ouro, o prêmio de maior prestígio do Festival.

Sobre sua fascinação com personagens tão trágicas como Veronika, ou seja, Sybille Schmitz, o diretor afirmou:
Eu tenho um sentimento doce sobre ela - eu entendo todas as coisas que ela fez de errado. Ela se deixou ser destruída. Talvez isso tenha algo a ver comigo.  Você diz à si mesmo: 'Não se deixe ser destruído assim, mas isso poderia acontecer comigo '.Tem pessoas que estão apenas aguardando meu colapso. 
Tragicamente, Veronika Voss foi o último filme completado de Fassbinder. O diretor faleceu em 10 de junho de 1982 depois de uma overdose de cocaína e barbitúricos - em uma morte estranhamente similar com a de uma de suas maiores divas: Sybille Schmitz.
Os holofotes foram apagados. Eles nunca mais retornarão para mim, eu sei. As ofertas que recebo agora são feitas por dó. Isso é o pior de tudo. Ninguém diz isso na minha cara, mas eu sei que quando as pessoas escutam o nome Sybille Schmitz, elas pensam: 'Ela já era, está acabada'." - entrevista replicada no livro Schöner als der Tod: Das Leben der Sybille Schmitz de Friedemann Beyer.

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