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A dama dragão de Hollywood: Anna May Wong

Conta-se a história de que o diretor e ator de filmes, Marshall Neilan, estava gravando um de seus filmes em Chinatown, bairro em Nova York, quando viu a pequena Huang Liu Tsong espiando o set de filmagens. Ele mandou alguém buscá-la, querendo colocá-la como uma figurante em seu filme. Apavorada, ela se escondeu no porão de um amigo, e assim perdeu sua primeira chance de aparecer no cinema. Felizmente, essa não foi sua única chance. 

Anna May Wong nasceu Huang Liu Tsong, que significa 'salgueiro amarelo congelado', em 3 de janeiro de 1905, em uma rua bem próxima de Chinatown, nos Estados Unidos. Seus pais eram Wong Sam Sing e Lee Gon Troy e ambos tinham uma lavanderia lá nomeada Wong Lavanderia. Anna tinha uma irmã mais velha e o fato de terem nascido, ambas, meninas, era um motivo enorme de desgosto para Wong, que acreditava ser necessário ter um filho homem para carregar o nome da família. 

Isso levou Lee a vestir Anna May como um menino no começo de sua vida, para tentar agradar o patriarca. Cinco anos depois, no entanto, seu desejo se realizou e depois de Lulu e Anna, ele teve quatro filhos homens e mais uma garotinha, que morreu logo após seu nascimento. Entre suas crianças, a única destinada ao sucesso cinematográfico era Anna May Wong. 

Divulgação/Gif
De acordo com a biografia Anna May Wong: From Laundryman's Daughter to Hollywood Legend de Graham Russell, Anna May Wong, que era da terceira geração de chineses nascidos nos Estados Unidos, começou a ajudar na lavanderia de sua família desde criança, passando roupas, dobrando e atendendo todo o tipo de clientes. Em casa, ela sempre ajudava sua mãe a cozinhar e ela levou esse hábito pelo resto da vida, fazendo comida para si e para grandes grupos de amigos. 

Anna May Wongm entretanto, ainda era chinesa e de uma etnia totalmente diferente da aceita nos Estados Unidos. Isso lhe rendeu um tempo muito difícil na escola, especialmente quando um colega decidiu furá-la com alfinetes porque queria saber se os chineses sentiam dor de modo diferente do que ele. Ela começou a usar casacos grandes para ir à escola e quando seu pai descobriu sobre a agressão física e verbal de suas filhas porque eram de descendência chinesa, transferiu as duas para uma escola chinesa em Chinatown. A partir daí, a vida escolar de Anna May Wong melhorou e muito, mas ela nunca foi muito interessada em estudos para começar. 

Anna May no colo de sua mãe, Lee e aos 17 anos no filme The Toll of The Sea                                 Divulgação/Montagem
Anna May Wong escolheu seu nome artístico com apenas nove anos de idade e a origem dele é bem curiosa. De acordo com uma entrevista que ela concedeu ao jornal Oakland Tribune em 1934, Anna foi em homenagem à uma amiga muito próxima, May porque o mês de maio (may em inglês) era seu favorito e Wong é claro, porque era o sobrenome de sua família. 

Na adolescência, ela contraiu uma doença chamada Coreia de Sydenham (que causa movimentos incontroláveis no corpo), mas acabou sendo "curada" quando um médico chinês começou a esfregar uma moeda chinesa da sorte em seu braço, criando uma ferida que a deixou tão histérica que a curou - na verdade, a doença também pode sumir do nada, mesmo sem qualquer tratamento adequado. 

Assim, de acordo com a mesma entrevista acima, ela começou a ir ao cinema, vendendo até objetos feitos de mármore para conseguir assistir aos seus filmes favoritos: "Foi depois de me recuperar dessa doença que eu comecei ir ao cinema. Foi nesse cinema mal ventilado e sujo que eu vivia uma vida remota e longe da minha realidade. Eu havia encontrado um escape da minha vida. Eu me tornei devotada ao Charlie Chaplin, Mae Murray, Ruth Roland, Pearl White, Grace Cunard e Francis Ford." 

Depois disso, Anna May estava resoluta em se tornar uma estrela de cinema. Sua sorte era que, segundo o livro Perpetually Cool: The Many Lives of Anna May Wong, seu primo, James Wang, trabalhava nos estúdios de Hollywood e conversando com ele, que lhe deu o apoio necessário, ela foi comunicar seu desejo para sua família. E não foi nada fácil: sua mãe, seguindo a tradição chinesa, se absteve da conversa enquanto Anna e seu pai brigavam. Ele achava que ela deveria se casar, ter filhos e ser uma boa garota chinesa. Ela discordava e ganhou a batalha, participando em filmes como Dinty (1920) e Fora da Lei (1920). 

Antes disso, contudo, Anna conseguiu seu primeiro papel no cinema através de James ao descobrir que o estúdio havia encarregado seu primo de encontrar 60 chineses para um grande filme e como não havia achado tantos, ele a convenceu a participar da película The Red Lantern (1919), seu primeiro papel no cinema no estúdio MGM, aos 14 anos de idade. 


Anna May Wong no filme O Ladrão de Bagdá (1924)                                                                 Divulgação
Ela provou o quanto estava certa sobre sua carreira ao participar do filme O Ladrão de Bagdá com Douglas Fairbanks, tornando-se a chinesa mais famosa de Hollywood! Antes ela ganhou o papel de destaque em The Toll of The Sea (1922), que foi o primeiro filme em Hollywood feito em cores e que a rendeu elogios de inúmeras pessoas influentes na indústria de Hollywood e da Europa, que consideravam que ela havia carregado todo o filme - disponível na íntegra em inglês - nas costas. 

Mesmo com o sucesso, o fato de Anna May Wong ter uma etnia diferente ainda fazia com que os seus papeis em Hollywood fossem escassos e caricatos. Isso porque, ela como chinesa, não poderia interpretar pares românticos com atores brancos e nem sequer beijar um. Com o Código Hays, o código de conduta Hollywoodiano, que entrou em vigência em 1930, o feito se tornou ainda mais remoto. 

Isso, portanto, a levava à papeis pequenos em grandes produções e, apesar de roubar a cena em muito de seus filmes, ela nunca poderia ter um papel de destaque em uma película. Em Toll of The Sea, ela se tornou a primeira mulher de descendência chinesa a ter seu nome no topo dos créditos, mas isso não lhe deu privilégio com papeis - ela era de outra raça em um pais que, nos anos 20, continuava a negar o acesso da migração de chineses para os Estados Unidos e proibia, por lei, o casamento entre chineses, ou descendentes, com brancos. 

    Anna May Wong como Princesa Tigrinha em Peter Pan (1924)                      Divulgação
Isso explica porque, apesar de ganhar destaque com Toll of The Sea (1922) e O Ladrão de Bagdá (1924), ela não progrediu em sua carreira hollywoodiana, mesmo ao tentar apagar suas origens chinesas por um tempo, cortando seu longo cabelo tipicamente chinês para um estilo chanel e aparando suas longas unhas afiadas. Ela se arrependeu da mudança logo e a partir daí, continuou a honrar suas origens chinesas.  

Mas, se faltavam papeis nos Estados Unidos, a Europa estava mais do que feliz em receber Anna May Wong de braços abertos, como o livro Anna May Wong: A Complete Guide de Philip Leibfried e Chei Mi Lane conta. Ela, inclusive, aprendeu a falar alemão para estrelar em seu primeiro filme no exterior, chamado Song, de 1928. No filme ela interpretava uma jovem dançarina apaixonada por um homem que não a amava e que tem uma trágica morte. 

Dois outros filmes em sua era de filmes mudos seguiram: o alemão Großstadtschmetterling e o seu último e mais famoso Picadilly (1929), que abriu espaço para seus filmes falados feitos na Alemanha e Reino Unido, como Hai-Tang (1930) e Der Weg zur Schande (1930) e o The Flame of Love (1930) em que Anna finalmente beija o protagonista branco, mas as cenas foram excluídas da versão americana. 
Sobre o seu tempo na Europa, que tinha papeis mais substanciosos para dar à Wong, ela contou: "Eu estava tão cansada das personagens que eu interpretava na América. Por que a chinesa do filme sempre é a vilã e tão cruel - assassina, como uma cobra na grama? Nós não somos assim!" 

Depois desse tempo no cinema estrangeiro, em que ela aprendeu a falar alemão, francês e até italiano, Anna May Wong retornou aos Estados Unidos, com muitas saudades de sua família, para estrelar no filme A Filha do Dragão (1931), ao lado do primeiro grande astro japonês do cinema americano, o incrivelmente belo Sessue Hayawaka.

Infelizmente, o filme que tinha tudo para unir dois grandes astros do oriente em uma fiel representação, não era nada além de grande estereótipo sobre os chineses e japoneses e mostrou claramente a falta de papeis bons para atores em Hollywood que não fossem brancos. Assim, Anna ficou conhecida como a Lady Dragon, a dama dragão, que representava uma chinesa perigosa e traiçoeira, além de sensual, noção que a atriz sempre abominou. 

    Anna May Wong e Sessue Haywaka - dois pioneiros do cinema americano                            Divulgação
No ano seguinte, ela estrelou no sucesso de bilheteria, o Expresso de Shanghai (1932), ao lado de Marlene Dietrich e Clive Brook, mas nada havia realmente mudado. Ela continuou participando de filmes hollywoodianos com pequenos papeis e sendo creditada quase por último, apesar de ser uma das estrelas e atrizes mais renomadas de sua época. Mais uma vez, o racismo e o preconceito americano contra sua etnia impedia que sua carreira crescesse como deveria. 

A gota d'água para Anna May Wong foi o filme Terra dos Deuses (1937), baseado no livro de sua amiga Pearl Buck, no qual ela desejava interpretar o papel de O-Lan, a esposa do protagonista. No seu lugar foi escalada a atriz Luise Rainer, que ganhou o Oscar de Melhor Atriz pelo papel. Vale lembrar que o livro e o filme são todos com personagens chineses e nem Luise e nem nenhum outro ator principal era chinês: eles foram "montados" para parecer com tal etnia.  

Em entrevista, ela admite que queria muito o papel de O-Lan, mas o estúdio queria que ela interpretasse Lotus, a amante. Isso, ela negou, alegando que "como chinesa, achava um insulto me pedirem interpretar o papel menos simpático do filme." Sua amiga, Tilly Losch, acabou interpretando o papel que ela negou. 

Luise Rainer à esquerda e Anna May à direita                         Divulgação/Montagem
Assim, em 1936, ela decidiu voltar às suas origens e fazer uma viagem para a China, procurando conhecer mais sobre si mesma e seu povo. A recepção não foi tão calorosa do que ela imaginava: as pessoas de lá queriam saber porque ela retratou o povo dela de modo tão derrogatório. Ela reafirmou que não tinha culpa, que atuava apenas o material que tinham disponível para ela. Anna May ficou por um ano por lá, mas quando voltou para os Estados Unidos, ela percebeu algo aterrorizante: nunca seria totalmente aceita pelos chineses e tampouco seria totalmente aceita pelos americanos.  

Com um novo contrato com a Paramount, a primeira estrela de descendência chinesa a conseguir um contrato fixo com qualquer estúdio, ela continuou atuando em filmes como Tráfico Humano (1938) e A ilha dos Renegados (1939), mas se aposentou das telonas em 1942. Em entrevista para o jornal RedLands Daily Fact de 1960, ela conta que deixou o mundo dos cinemas porque "estava cansada e queria um tempo para descobrir porque ela estava nesse círculo vicioso. Como Walter Winchell já disse: 'Em Hollywood quando eles te trabalham, eles fazem você trabalhar demais. Quando te negam, eles te fazem morrer de fome.'" Ela se se focou, então, em ajudar o exército na Segunda Guerra Mundial, participando da United China Relief, que reunia fundos para os chineses em tempo de crises. 

Anna May Wong em seu penúltimo papel no cinema, aos 55 anos de idade                           Divulgação
Antes de falecer, em 1961, a Dama Dragão, que sempre ficou presa nos estereótipos chineses de Hollywood, interpretou a empregada de Lana Tuner no filme Retrato em Negro (1960). Ela tinha 56 anos de idade e nunca havia casado, dizendo que "estava muito presa em suas manias." A atriz, contudo, teve vários romances, incluindo com um policial que a ajudou em um caso de extorção, e com o diretor Marshall Neilan, que ficou tão encantado com ela quando Wong ainda era adolescente que criou papeis específicos em filmes só para ela como em Dinty (1920) e Bits of Life (1921). 

Seu último crédito foi no show de televisão da atriz Barbara Stanwyck, mas sua carreira, tanto na televisão quanto nos filmes, estava renascendo, sendo que ela participaria do filme Flor de Lotus (1961) como a personagem Madame Liang, que começaria a ser gravado em março. O filme foi indicado para 5 Oscars, mas Anna morreu antes das gravações sequer iniciarem: em 4 de fevereiro de 1961 por causa de um ataque cardíaco fatal. Uma renascença na carreira que ela perdeu por um triz.  

Grande performer nos cinemas, nas telinhas, em seus atos no cabaret e tanto na era falada quanto muda dos filmes, Anna May Wong foi uma pioneira: a primeira atriz chinesa-americana a fazer sucesso internacional, apesar das limitações de raça, de lei e de papeis rasos. Sua influência na moda - usando vestimentas típicas chinesas que ela garantiu que ficavam bem nela porque diferente das roupas tradicionais, ela fazia questão que as suas fossem ajustadas ao seu corpo - sua influência no cinema e nas artes no geral, inclusive seu trabalho em peças, tornaram-na uma lenda. 


Anna May Wong usava roupas típicas até em eventos casuais                 Divulgação/Life
A Garota Dragão, a exótica chinesa que está prestes a ganhar um filme sobre ela desde 2014, era durona, sempre excedendo as expectativas que as pessoas tinham sobre ela. Sobre o preconceito que ela sofria em Hollywood, Anna May era resoluta em afirmar sobre suas personagens: "Na Europa, os diretores são mais honestos com suas escalações e em vez de chorar para conseguir papeis estereotipados, eu consegui atuar como eu mesma." 

E como ela mesma, Anna May Wong será lembrada sempre! 



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