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Os figurinos deslumbrantes de Xica da Silva (1976)

*alguns spoilers de Xica da Silva (idem, 1976) 

Xica da Silva, ou melhor Chica da Silva, foi uma importante figura da história brasileira. Apelido de Francisca da Silva Oliveira, filha de uma escrava e seu senhor, que tornou-se "rainha" de Minas Gerais ao ser comprada por João Fernandes da Oliveira, contratador de diamantes, que lhe deu a alforria e a liberdade de ser uma importante dama da sociedade. Com ela, ele teve treze filhos.

Apesar do mito de que Xica da Silva era uma grande "potência sexual" e que havia conseguido sua liberdade rapidamente - em dois meses na pose de João - apenas por sua beleza e charme, a verdade não poderia ser mais diferente. De acordo com o livro Para conhecer Chica da Silva por Keila Grinberg, Lucia Grinberg e Anita Almeida, a primeira descrição de Chica na literatura não a exaltava por seus atributos físicos:
[Chica] não possuía graças, não possuía belezas, não possuía espírito, enfim, não possuía atrativo algum que pudesse justificar uma forte paixão. - trecho da obra Memórias do Distrito Diamantino de Felício dos Santos, 1868. 
Zezé Motta interpretou a exuberante Xica da Silva
A noção a respeito de Chica da Silva mudou com o passar dos anos, quando a figura dela como uma mulher confiante e sensual, começou a ser disseminada em livros e em escolas de samba - até em músicas de Carnaval. A consagração de Chica como o estereótipo da mulher mulata sendo símbolo sexual ocorreu no livro Xica da Silva de João Felício dos Santos, sobrinho-neto do marido da ex-escrava.

Agora com o apelido que todos a conhecem, Xica da Silva sem o Ch, a rainha de Diamantina de Minas Gerais, a tão importante figura era descrita da forma mais caricata e sexy possível:
Muco é que quase desmaia com o inesperadíssimo. — Examina meus dentes outra vez, uai! — Xica era impiedosa com o pobre Muco — Examina, sô! — e abriu muito a boca, pícara e sensual nos lábios escuros, mexendo com a língua como uma serpente prestes a picar. - livro Xica da Silva, página 102. 
É de mais valia informar essa mudança na caracterização da figura histórica de Xica da Silva, já que o diretor Cacá Diegues usou esse livro -e o mito popular criado pelo povo - como inspiração para criar o tão famoso filme Xica da Silva (1976). E foi com base nessa Xica voluptuosa, sensual, provocadora e conquistadora que o diretor de arte Luiz Carlos Ripper, nascido em 16 de julho 1943, criou os figurinos desse grande filme.

Irmão do também talentoso arquiteto, José Ripper, a ligação de Luiz com as artes começou desde criança e de acordo com o livro Luiz Carlos Mendes Ripper: Poesia e Subversão de Heloisa Lyra Bulcão, ele estudou xilogravura e pintura no Instituto Belas Artes e depois arquitetura e cinema pela Universidade de Brasília.
Luiz Carlos Ripper recebendo o prêmio Coruja por seus trabalhos de cinema em 1971                    BBC Gov
Uma figura contrastante, Ripper começou a fazer sucesso criando cenários e figurinos para peças de teatro brasileiras e logo fez a transição para o cinema. Seu primeiro trabalho solo como figurinista e diretor de arte foi para o filme El Justiceiro (idem, 1967) e logo ele foi reconhecido por seu talento artístico.

Assim, não demorou muito para que Cacá Diegues notasse o seu talento e o chama-se para trabalhar com ele no filme Os Herdeiros (1970). Jarbas Barbosa, um dos produtores da obra, afirmou que Ripper tinha "fama de terrível e complicado e com quem os diretores não conseguiam trabalhar. Era muito difícil." Isso, no entanto, não impediu que ele e Cacá se reunissem com Luiz novamente em Xica da Silva (1976).

Isso porque, ainda de acordo com a entrevista de Jarbas Barbosa para o livro 30 anos de cinema novo de Silvia Oroz, Ripper era um gênio:
Não pode ser difícil trabalhar com quem é competente. Deve-se saber aproveitar a competência dos outros. Tanto assim que depois o levei para Xica da Silva, onde fez um trabalho grandioso. É o maior cenógrafo do Brasil. Se eu hoje viesse e a fazer um filme, chamaria de novo o Luiz Carlos Ripper. É... até que pode ser. 
Foto publicitária de Xica da Silva (1976)
Perfeccionista, de acordo com a matéria da revista Manchete, Ripper queria que tudo na produção tivesse senso de autenticidade. Tanto que "uma equipe de engenharia está reconstruindo a galera que João Fernandes mandou fazer para que sua amada tivesse a sensação de velejar no mar." Esse mesmo sentimento foi transposto para os figurinos de A Xica da Silva (1976) que ao mesmo tempo que eram fieis à sua época, também possuíam uma explosão de cor e sensualidade inerentes dos anos 70.

Seguindo uma vibe mais carnavalesca, as roupas de Xica da Silva são condizentes com a época em que a escrava estava inserida, 1860, com os vestidos vitorianos, saias em inúmeras camadas e o colo à mostra. No entanto, Ripper subverte a etiqueta de vestimentas da época e insere cores fortes e destoantes entre si, como o laranja, rosa, azul, sempre pendendo para o lado do exagero com mangas bufantes e corpetes estruturados.

A ex-escrava também usa inúmeras joias e utilizava uma peruca por cima de seus cabelos, cobertas com um pó opaco e branco que tornava os cabelos cinzas, pois naquele período isso era apenas utilizado pelos mais ricos e bem-nascidos, ou seja, evidenciavam sua superação de classe. Apesar das roupas vibrantes e das maneiras sensuais, Xica ainda queria pertencer à classe na qual era inserida, queria respeito. A maquiagem era forte, com os olhos marcados de sombras brancas e amarelas, feita para que onde quer que ela fosse, Xica fosse notada.

Um contraponto com Hortência, interpretada por Elke Maravilha, que sempre aparecia coberta e com cores mais sóbrias, exacerbando a diferença de classe social entre as duas: a mulher negra que batalhou para conseguir uma posição confortável e a branca que já nasceu com todas as regalias, mas também sofria com as amarras da sociedade machista. 

Zezé Motta exibindo figurinos sensuais e cheio de cores para Xica da Silva (idem, 1976)
De acordo com O Percevejo Online, que replicou a entrevista de Luiz Carlos Ripper em seu periódico por Heloisa Lyra Bulcão, o cenografista trabalhou em conjunto com a população de Diamantina, onde o filme foi gravado, para criar os cenários e principalmente os figurinos de Xica da Silva:
Eu  sempre  faço  isso:  produzir  o  que  tenho  de  fazer  com  a comunidade.  E  nunca  levo  as  coisas  prontas.  Por  exemplo, os  tecidos  foram  comprados  no  depósito  do  armarinho. Alguns  eu  comprei  em  Belo  Horizonte,  algumas  coisas  eu comprei.  Mas,  na  realidade,  fiz  tudo  lá,  com  as  costureiras de  lá,  com  os  carpinteiros  de  lá.  E  normalmente  faço  isso. 
Percebe-se, portanto, muito bem a noção do carnavalesco em Xica da Silva, com sequências repletas de danças e com Xica e seus criados usando roupas vibrantes, beirando ao que vemos em desfiles de escolas de Samba. Em certa parte do filme, a personagem de Zezé Motta até passa dourado pelo corpo, dançando nua, em uma alusão - estereotipada - direta à conexão das negras como símbolos sexuais nas festanças de fevereiro.

De todos os personagens, apenas Conde de Valadares, interpretado por José Wilker tem um guarda-roupa tão vibrante quanto Xica. O amado da ex-escrava, João Fernandes (Walmor Chagas) se veste de modo sóbrio, quase como se Ripper quisesse afirmar que opostos se atraem - a vibrante e sensual Xica e o tradicional português.

As roupas vibrantes e coloridas de Xica da Silva (idem, 1976)
Luiz Carlos Ripper também pensou em um grande trunfo ao fazer com que Xica da Silva iniciasse tendências, como adicionar cores vibrantes as roupas brancas simples dos criados. Em sua primeira noite com José, ela usa uma camisola simples, branca e é a única vez que a vemos dessa maneira. Ao longo do filme sempre muito amarelo - representando o status de riqueza dela - e roxo - considerado uma cor da realeza -e o vermelho vibrante, para enaltecer seus atributos sensuais.

Por exemplo, quando Xica da Silva recebe sua carta de alforria, atestando que ela é finalmente uma negra livre, ela está totalmente vestida em tons de amarelo, inclusive sua peruca é da mesma cor. Apenas vemos a personagem em tons sóbrios quando João Fernandes a larga, graças à uma tramoia feita pelo conde de Valadares.  Dali, ela volta a usar roupas mais simples e recatadas.

Os elementos lúdicos, típicos de Luiz Carlos Ripper, também são uma parte importante de Xica da Silva (1976) pois remetem a noção de que cada pessoa tem da personagem e os permitem imaginar que tipo de Xica eles querem enaltecer: a sedutora, a esperta ou a transgressora. Além de permitir que o filme tenha uma atmosfera mais intimista, como se tudo estivesse passando na frente de seus olhos,  em um teatro.

Tudo isso, aliás, inserido em um universo colorido que representa tanto a realidade da época de Xica quanto a dos anos 70, década da gravação do filme, utilizando a metalinguagem com maestria.

Um teatro dentro do filme - uso da metalinguagem
Em seu livro Vida de cinema: Antes, durante e depois do Cinema Novo por Cacá Diegues, o diretor exemplifica muito bem o que todos queriam realizar com Xica da Silva e como Luiz Carlos Ripper, tanto como diretor de arte como figurinista, superou suas expectativas:
Xica da Silva sofreria uma transição de cores rigorosa. Ela devia começar pelo ocre e pelo dourado solenes do interior das igrejas, passaria pela graciosidade dos azuis, amarelos e vermelhos suaves de suas fachadas, até chegar à explosão de cores quentes e exuberantes no apogeu de Xica. Da partida do contratador [João] em diante, o filme ia se tornando monocromático até a volta da cidade alegremente colorida no final. 
Foi com este sentimento carnavalesco, vibrante e lúdico que Luiz Carlos Ripper conseguiu inserir uma inerente brasilidade em Xica da Silva (1976) e provar que os figurinos de um filme são ferramentas que definem seus personagens.

Tornando, assim, Xica da Silva (1976) em um filme que talvez não seja fiel à figura de Chica, mas sim à construção popular da personagem. E que Xica!

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