A arte do clássico noir mexicano A Deusa Ajoelhada (1947)

O gênero de filme noir pode até ter se aperfeiçoado nos Estados Unidos, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, mas o México não ficou nada atrás dessa façanha. A prova disso é o filme A Deusa Ajoelhada (La Diosa Arrodillada), de 1947. 

Estrelado pelas duas maiores estrelas da época, a maravilhosa María Félix e o charmoso Arturo de Córdova, conhecemos a história de Antonio Ituarte, um marido que tenta ser fiel à sua esposa doente, Helena (Rosario Granados), mas acaba se envolvendo com Raquel Serrano, a deusa por quem todos devem se ajoelhar. 

Filmado em preto e branco e bancado pelo famoso estúdio Panamerican Films S.A do México, A Deusa Ajoelhada (1947) é um exemplo clássico do gênero noir: temos a femme fatale, que leva seu homem ao mau caminho enquanto ele, apaixonado e sem escrúpulos, faz de tudo para garantir seu amor. Como se isso já não bastasse existe ainda uma trama paralela de assassinato e perigo que revela como os personagens são desprezíveis, por mais que a audiência não deixe de torcer por eles. 
Roberto Galvadón, o diretor da película, era um expert em melodramas e toda sua filmografia ficou marcada por essa extravagância detalhista e pela sua obsessão em dissecar a vida burguesa, o que se conectava, muito bem, ao estilo cinematográfico de outros países. Classe, afinal, é universal. 

O arquear de sobrancelhas de Felíx era uma de suas marcas registradas           Panamerican Films/Gif
Todos os membros da equipe cinematográfica, aliás, se esforçaram para que o filme fosse tão visualmente belo quanto sua história fosse envolvente. As vestimentas da estrela María Felíx e do restante do elenco foram coordenadas pelas figurinistas Lilian Oppenheim e Aurora Mainez, e representam as características das personagens, enquanto que, a cenografia de Manuel Fontanals, enfatiza o ambiente e as situações surreais presentes nesse drama noir. 

Essa caracterização se inicia pelas referências nada sutis do filme. Um exemplo? Raquel, decidida a acabar com seu relacionamento com Antonio, lhe escreve uma carta avisando que ele não aprovaria o passado dela e pede que os dois se separem. Já ele, alheio a essa decisão, resolve por si mesmo não viajar para Guadalajara. O motivo? Ao ver um outdoor do lado de fora de seu escritório sobre um perfume chamado Deseo, ou seja, Desejo, que o faz lembrar de Raquel. Sobre isso, Ituarte revela que o desejo é "uma força que cresce, toma forma, se torna livre, maior do que você. Então, acaba nos destruindo e pior, acaba destruindo as pessoas próximas à nós." Logo depois, sua esposa, Helena lhe telefona. O telespectador sabe disso pela foto dela que está "convenientemente" colocada ao lado do telefone. Os sinais estão sempre à vista neste filme e nem o mais desavisado dos espectadores pode perdê-los. 

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Outro prenúncio importante do filme acontece quando Antonio segue Raquel, que se transformou um uma corista, até o Panamá, onde ela se apresenta em um clube chamado Panama's Paradise (O Paraíso de Panamá). Raquel é, portanto, o paraíso inalcançável de Ituarte. Mas, afinal, por que o filme tem o nome de A Deusa Ajoelhada? Baseado na história do romancista Ladislas Fodor, a femme fatale Raquel é, além de uma mulher da noite, uma modelo que posa nua, para escultores. Antonio não saberia disso se sua esposa não tivesse insistido na compra de uma estátua para a mais nova fonte de sua casa. É no estúdio de um amigo artista que ele se depara com a Raquel e sua Deusa Ajoelhada, a escultura feita a partir do corpo dela.   


Antonio se afunda cada vez mais em seu desejo                  Panamerican Films/Divulgação

Praticamente a primeira metade do filme, que tem 90 minutos de duração, mostra a personagem de Antonio maravilhado com a beleza de Raquel e, por consequência, sua escultura. Posicionada na fonte, A Deusa Ajoelhada é vista por todos os ângulos imagináveis: quando Ituarte está em seu escritório particular e pela sala de jantar, numa clara oposição ao retrato de Helena. A estátua, portanto, age como uma maldição entre o casamento de Antonio e Helena: sempre à espreita, amaldiçoando, inclusive, o aniversário de bodas do casal, no qual a trama tem seu clímax. 

O produtor de arte Manuel Fontanals começou a trabalhar no mundo cinematográfico em 1926 como um figurinista, o que, talvez, lhe tenha dado um olho mais crítico ao lidar com tais detalhes das cenas. Podemos perceber isso pela contraposição do quadro representando Helena, em cima da lareira, e a estátua de Raquel, no pátio. O primeiro remete ao amor quente e confortável de sua esposa. O segundo é o amor frio, excitante. 


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E não é só isso que Manuel representa em seus cenários: ao retratar as duas mulheres mais importantes da vida de Antonio, o produtor artístico consegue deixar implícito o fato de que elas vem de lugares diferentes, apenas pelas mobílias que lhe cercam. Helena tem uma casa luxuosa, repleta de esculturas e obras de artes. Já Raquel está sempre em quartos de hotéis diferentes, mal mobiliados e sem vida. Isso não impede que Antonio se sinta mais à vontade com Raquel, tendo seus maiores momentos de paixão em um simples sofá. No quarto que ele dividia com a esposa, a cruz acima deles já diz tudo: Helena é pura e não é isso que Antonio procura. 

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O narcisismo de Raquel e Antonio é óbvio se observarmos mais um elemento da cenografia: o espelho. É esse objeto que segue os protagonistas em seus momentos mais reflexivos. Isso acontece, por exemplo, quando Raquel senta-se sozinha na mesa, que outrora, recebia inúmeros convidados de Helena e Antonio. Atrás dela, há um grande espelho, julgando-a pelos seus atos, que a deixaram sozinha mesmo ao lado de Ituarte. Os dois estavam tão apaixonados pela imagem de seus próprios desejos que recusavam perceber suas consequências. Tanto que, a última parte do filme se define em culpa: Antonio se sente mal por tudo que fez e mais uma vez recorre ao seu isqueiro para tentar consertar tudo, durante a cena final eletrizante de A Deusa Ajoelhada (1947). 

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Com a personalidade de Raquel, contudo, fica uma dúvida: Será que uma deusa ajoelha-se diante de alguém? A femme fatale, que ama à si mesma e sua própria imagem acima de tudo e todos, jamais. Raquel Serrano, então, nunca!


Como Juana La Virgen se transformou em Jane The Virgin

*aviso: spoilers sobre a série

Gina Rodriguez, a estrela da série Jane The Virgin, se tornou a primeira latina a ganhar o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Série de Comédia ou Musical em 2015. Dois anos depois, a aclamada série já está confirmada para uma quarta temporada repleta de dramas dignos de uma telenovela: com um narrador impactante e situações tão absurdas quanto os próprios personagens. Mas essa veia exagerada da série não é coincidência: Jane The Virgin foi baseada na telenovela Juana La Virgen que era transmitida pela emissora Radio Caracas Televisión C.A., na Venezuela em 2002. 

A showrunner da série americana, Jennie Snyder Urman, revelou durante uma entrevista com o site A.V Club que quando a ideia do show Jane The Virgin lhe foi apresentada ela achou necessário se distanciar o máximo possível do desenrolar da telenovela:" Eu realmente queria saber como o original era para pegarmos o que funcionava e colocar em nosso mundo, criando algo novo, porque se fizéssemos o mesmo que a telenovela, não funcionaria - eles já fizeram isso e muito bem. Eu queria ter a certeza que se a adaptássemos se transformaria em algo novo." 
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Urman fez seu trabalho: Juana e Jane não poderiam ser mais diferentes! Juana La Virgen foi baseada na história original da roteirista venezuelana Perla Farías e começou a ser exibida pela emissora RCTCA em 14 de março de 2002. Aqui no Brasil, a novela fez sua estreia alguns meses depois, em 15 de junho, sob o nome de Joana, a Virgem, pela TV Record. Joana, ou melhor, Juana Pérez (Daniela Alvarado), é uma típica adolescente de 17 anos de idade, criada por sua mãe Ana Mária Pérez (Marialejandra Martin) e sua avó, a dona Azucena Pérez, uma senhora rígida e fervorosa. Inseminada acidentalmente, Juana é a única chance de Maurício de la Vega (Ricardo Àlamo) se tornar um pai, mas é claro que a esposa malvada dele, Carlota (Roxana Días) e Desirée (Norkys Batista) não vão desistir de Maurício assim tão fácil. 

Nesta versão original de Juana La Virgen, vale ressaltar, a protagonista não faz parte de um triângulo amoroso e nem descobre que está grávida no primeiro capítulo. Para se ter uma ideia, Juana apenas constata que está grávida depois de quinze capítulos e demora mais um pouco para que sua família descubra, duvidando, inclusive, que a garota seja realmente virgem. Em Jane The Virgin ninguém duvida de sua palavra. Aliás, na série, Jane está dividida entre dois amores enquanto Juana tem como amor verdadeiro Maurício, o pai de sua criança, com quem ela sempre esteve destinada a ficar. É com ele que Juana, ainda grávida, perde sua virgindade, o que foi alvo de grande polêmica na Venezuela. Jane mantém sua palavra: fica virgem até seu casamento. 

Joana, a Virgem (Juana La Virgen) quando era transmitido pela Record entre 2002 e 2003

Já na sinopse de Jane The Virgin, Jane Villanueva (Gina Rodrigues), é uma aspirante à escritora de 23 anos de idade que escolheu ser virgem por escolha própria e por sua religião. Noiva de Michael Cordero Jr. (Brett Dier), ela já tem sua vida toda planejada, a não ser por uma inseminação artificial acidental que a faz se tornar a única chance de Rafael (Justin Baldoni) de se tornar um pai. Mas a ideia de usar a amostra não foi dele: sua esposa Petra (Yael Grobglas) resolveu usar o esperma para engravidar e impedir seu divórcio. Adicione à essa mistura um assassino sem rosto, uma mãe inconsequente e um pai ator de novelas, chamado Rogelio de La Vega em referência ao Maurício de Juana, la Virgen, e temos a vida de Jane, com um dos melhores triângulos amorosos já feitos na televisão atual e completada por um narrador que mantém o tom exagerado da típica telenovela com perfeição.  

Assim, fica fácil perceber que Juana La Virgen e Jane The Virgin apenas têm em comum a história central: uma virgem que acaba engravidando acidentalmente. Juana La Virgen se leva muito à sério enquanto Jane The Virgin é uma série que permanece fiel à sua drama-comédia tipo pastelão. 
Juana, La Virgen e Jane The Virgin: iguais, pero no mucho                                 Divulgação/Gif




A série, aliás, não foi a única regravação de Juana La Virgen. Entre 2009 e 2010, uma emissora na Polônia exibiu o show Majka, ambientada em Cracóvia, sobre uma estudante de fotografia, interpretada por Joanna Osyda, que acaba grávida por um erro de inseminação artificial e trabalha na mesma revista que Michael (Tomasz Ciachorowski), seu chefe e pai de seu bebê. Parece familiar? 

A famosa emissora Televisa, do México, também fez sua versão de Juana La Virgen, chamada La Virgen de la Calle, em 2014 com Maria Gabriela Faría e Juan Pablo Llano como protagonistas. E tem mais: existe até mesmo uma adaptação indiana intitulada Ek Ladki Anjaani Si, que fez um tremendo sucesso com um total de 364 episódios exibidos pelo canal Sony na Índia entre 2005 e 2007, na qual Juana, ou melhor, Anu (Kanchi Kaul) é uma jovem de 18 anos de idade, que tem seus sonhos de se tornar uma jornalista esmagados por esse bebê surpresa. 

A telenovela Juana La Virgen deu origem à outras de muito sucesso                Divulgação/Montagem
O mais interessante é que em todas as versões de Juana La Virgen, as protagonistas ficaram, no final, com o pai de seus filhos, o que em Jane The Virgin seria o equivalente de Jane terminar ao lado de Rafael. A showrunner Jennie Urman já deu a entender que não pretende que a história tenha o mesmo final. Será mesmo? Ou é possível mais uma reviravolta digna de telenovela? 


O real Eddie 'A Águia' Edwards do filme Voando Alto (2016)


*aviso: spoilers sobre o filme 

Não existe nada como uma boa história de superação. A incerteza da vitória combinada com os sacrifícios passados e provando erradas as pessoas que duvidavam de sua capacidade. Michael 'Eddie' Edwards, foi, assim, um vitorioso: provou que todos estavam errados sobre ele e com muita satisfação. Para se ter uma ideia, ele é, até hoje, o único recordista britânico da modalidade salto de esqui. O filme Voando Alto (Eddie The Eagle), de 2016, baseado em sua trajetória, é a prova gravada de sua inquebrável força de vontade. 

É nele que conhecemos Michael, ainda criança, cultivando seu sonho de um dia participar das Olimpíadas. Seu pai o desencorajava a cada nova tentativa enquanto sua mãe acreditava e o ajudava a perseverar para realizar seu sonho. Um dos fatos que logo moldam o tom da história de superação de Michael é a cena dele, quando criança, usando muletas devido à um problema no joelho. De fato, o acidente aconteceu: sempre aventureiro, o Eddie real danificou sua cartilagem do joelho e teve que ficar três anos engessado. Mas isso não o impediu em nada: Eddie garantiria seu lugar na história durante as Olimpíadas de Inverno de 1988 em Calgary, no Canadá. 

Michael 'Eddie' Edwards foi um dos azarões mais famosos do esporte                         Divulgação/Gif
Em entrevista ao jornal The Guardian, o atleta revela que o filme Voando Alto (Eddie The Eagle), de 2016, não é uma cinebiografia exata sobre sua vida: "Há uma grande quantidade de licença poética no filme. Se eles me mostrassem como um atleta soberbo, não encaixaria na história. Eu era até que um bom atleta, mas é verdade que eu tive essas dificuldades e eles queriam focar nas dificuldades." 

O sonho original de Eddie era ser um jogador de futebol para participar das Olimpíadas. Com o joelho machucado, ser um atleta futebolístico estava fora de questão de forma permantente. Assim, aos 14 anos de idade, ele descobriu a pista de esqui e se apaixonou pelo esporte. O modo como isso aconteceu foi diferente do representado no filme Voando Alto, que mostra Eddie se interessando pelo esqui porque ao lado do trabalho de seu pai existia uma pista do esporte. O verdadeiro Eddie conta em seu livro Eddie The Eagle; My Story, lançado em 2016, que começou a treinar na modalidade ao fazer uma visita à pista de esqui em Gloucester, na Inglaterra, que sua escola proporcionou aos seus alunos visitarem durante uma viagem. Esse foi o início da longa trajetória de Eddie 'A Águia' Edwards que, na cinebiografia, é interpretado por Taron Egerton; extremamente elogiado pelo atleta. 

Voando Alto também toma mais uma liberdade para fazer com que seu filme seja mais atrativo para sua audiência: mostram Eddie como um péssimo esquiador, quando, na verdade, ele se qualificou para o esquadrão de esqui da Inglaterra em 1984 como o nono atleta mais veloz do mundo. Por que ele não participou das Olimpíadas então?  No filme Voando Alto a justificativa é pela sua aparente falta de destreza. Já na vida real, ele conseguiu fazer parte do esquadrão da Inglaterra, mas acabou sendo expulso no seu primeiro dia por um de seus seletores. Ele tentou se qualificar diretamente para o time britânico, mas tentar sobreviver na Itália por tanto tempo se provou um sacrifício monetário que ele não poderia mais manter. Voltou para casa. 

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Foi assim, sem dinheiro e de volta para casa que ele resolveu se tornar um saltador de esqui: era mais barato e, o melhor de tudo, era que o Reino Unido nunca teve um atleta nessa modalidade depois de Percy Legard, que competiu em 1929. Eddie juntou o útil ao agradável e foi atrás de seu sonho olímpico. Ele não se decidiu pelo esporte ao observar um pôster em sua parede, como o filme sugere. 

Outra mudança do longa-metragem foi como ele conseguiu treinar para ser um saltador de esqui: ao invés de conhecer uma dona de bar educada e generosa, que o deixava dormir no estoque em troca de alguns serviços, o Eddie, na verdade, trabalhava como podia: entregando jornais, e até trabalhando como pedreiro para ganhar dinheiro para seu treinamento. Sua mãe, Janette, seu pai Terry (que apoiava incondicionalmente o sonho do filho e nunca foi antagonista à ele) e seus irmãos Duncan e Elizabeth (que não são mencionados no filme) financiavam sua ambição como e quando podiam. O atleta até precisou dormir em um hospital psiquiátrico por falta de dinheiro!   

No entanto, uma da licenças mais exageradas do filme, mas que fazem parte de narrativas com esse tipo de fórmula biográfica, foi a adição do personagem Bronson Peary, vivido por Hugh Jackman, um ex-saltador de esqui bem-sucedido que acabou se perdendo no meio da fama e do talento e, se afeiçoando por Eddie, o ajuda a treinar para as Olimpíadas de Inverno. Na realidade, Edwards passou por vários treinadores em sua jornada, com os mais importantes sendo Chuck Berghorn e John Viscome,  que o instruíram em Lake Placid, em Nova York, nos Estados Unidos em 1985. Um ano depois Eddie já havia começado a competir em eventos menores e até representou a Grã Bretanha em 1987 no Campeonato Mundial em Oberstdorf, na Alemanha, ficando na posição 67. O público adorava o jeito peculiar de Eddie e logo ele ganhou uma horda de fãs fieis. 

Bronson foi um personagem totalmente inventado pelos roteiristas                              Divulgação

Por outro lado, Michael 'Eddie' Edwards nunca teve uma relação fácil com o comitê britânico, fato que Voando Alto mostra com perfeição. Ao ser classificado para as Olimpíadas de Inverno de 1988 em Calgary no Canadá, seus colegas esquiadores realmente não gostaram nada de sua presença e basicamente o ignoravam. Apenas demonstraram ciúmes de Eddie quando sua personalidade expansiva, que logo fez sucesso na mídia, o tornou um queridinho do público, que lhe nomearam de Eddie The Eagle (Eddie A Águia).  

Mas nem a torcida de seus fãs impediu que ele acabasse em último em todos os pulos que deu durante as Olimpíadas: os de 70 e 90 metros. Voltou para casa, entretanto, como um herói, sendo mencionado inclusive no discurso de encerramento das Olimpíadas. Suas dificuldades, infelizmente, ainda não tinham acabado. 

Depois de bater todos os recordes britânicos no esporte, o Comitê Olímpico, decidiu que o fenômeno impressionante de Eddie não deveria ocorrer de novo. Resolveram criar, em 1990, a Eddie The Eagle Rule (A regra de Eddie The Eagle), que obriga os concorrentes a competirem em eventos internacionais e conseguirem uma qualificação entre os 30% entre os 50 melhores competidores para serem qualificados para os Jogos. Antes bastava ser o único representante do esporte em seu país e você já estava, praticamente, dentro! Eddie tentou se qualificar para as Olimpíadas de Inverno de 1992 e 1994. Não obteve sucesso e se aposentou. 

A vida de Michael 'Eddie' Edwards continuou a rodar como uma montanha-russa: de um azarão que se tornou um herói, aclamado por horas ao retornar para casa, foi à falência, deu à volta por cima de novo, se tornou pai e continua a dar palestras motivacionais e a contar sua história para quem quiser ouvir. Em 1988 ele personificou o verdadeiro espirito dos Jogos Olímpicos que o filme Voando Alto (2016) representou tão bem: "o importante é competir, não ganhar."  No fim, Eddie fez os dois. 

Rachel Portman e sua composição para o filme Emma (1996)

Hollywood tem um grande problema de diversidade e isso não é nenhuma novidade. Apesar de existirem melhores oportunidades para mulheres no mundo da televisão, atualmente, essa opção ainda não é o bastante. Uma prova disso pode ser vista no estudo Inclusion or Invisibility; Comprehensive Annenberg Report on Diversity in Entertainment de 2016, no qual se revela que apenas 38% das falas em programas de televisão foram ditas por mulheres. No cinema essa taxa cai ainda mais: o número vai para 28%. Atrás das câmeras o cenário também não é dos melhores: a estimativa é que existam quase seis diretores homens para cada uma diretora mulher. Para as compositoras de trilhas sonoras, a disparidade continua chocante: 97% dos filmes de 2016, segundo o The Celluloid Ceiling: Behind-the-Scenes Employment of Women on the Top 100, 250, and 500 Films of 2016, não tiveram nenhuma mulher incluída na parte de composição musical. 

A única mulher a ter ganhado o prêmio Oscar de Melhor Trilha Sonora foi Rachel Portman, em 1997, pelo filme romântico Emma (1996), baseado no livro homônimo de Jane Austen. Mas até sua vitória tem uma pegadinha: Rachel ganhou na categoria comédia. Isso aconteceu porque entre 1995 e 1998, a Academia decidiu dividir o prêmio de melhor Trilha Sonora em dois: o Melhor Trilha Sonora Dramática e Melhor Trilha Sonora de Comédia. 

 O prêmio foi apresentado por Debbie Reynolds e Carrie Fisher                                  Divulgação
A categoria pela qual Portman se tornou a primeira mulher a ganhar o prêmio de Melhor Trilha Sonora foi descontinuada porque, de acordo com o livro The Big Show de Steve Pond, renomado crítico e jornalista de cinema, o Oscar originalmente não queria fazer distinção entre os tipos de filme concorrendo à estatueta, já que essa separação havia ocorrido apenas para tentar resolver o problema com a categoria de Melhor Musical Original, que foi presenteado até 1984. Hoje em dia o problema se resolve e a categoria intitula-se apenas como Oscar de Melhor Trilha Sonora.  

A confusão, embora nos diga muito sobre a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas e a mente fechada dos votantes, não ofusca, em nada, a merecida vitória de Rachel Portman. Nascida em 11 de dezembro de 1960 em Halsmere na Inglaterra, Rachel começou sua carreira no cinema em 1982 ao fazer parte do filme Privileged, que contava com o ator Hugh Grant no elenco. Segundo seu website oficial, a britânica compunha desde 14 anos de idade, mas ficou realmente interessada em seguir uma carreira no cinema enquanto estudava música na Universidade de Oxford. 

Seu envolvimento com o filme Emma começou quando foi convocada pelo novato diretor Doug McGrath para escrever uma trilha sonora à altura do romance de Jane Austen. O filme começou a tomar forma no ano anterior, em 1995, quando o cineasta pretendia dar uma visão mais contemporânea ao filme. Harvey Winstein, diretor do estúdio Miramax, que financiava a adaptação, gostou da ideia que Emma (1996) fosse mais atual. Mal eles sabiam que, naquele momento, As Patricinhas de Beverly Hills (1995) já estava prestes a ser lançado. Decidiram-se, portanto, por uma versão clássica do filme.  

Este foi o primeiro papel de destaque de Gwyneth Paltrow                                Miramax/Gif
Rachel Portman era a pessoa perfeita para criar esse tipo de trilha sonora. Romântica, fã de Bach e Mahler, a compositora sabe escrever músicas que focam tanto nos personagens quanto nas situações que os moldam. Um exemplo é a composição do título inicial do filme, que começa suave e depois se mescla com a música animada do casamento entre a amiga e ama de Emma, Sra.Taylor e o Sr. Weston, pai do aclamado Frank Churchill, interpretado por Ewan McGregor.  

Aliás, a chegada dele ao vilarejo recebe uma das composições mais vibrantes de Portman, com o ponto alto dela sendo quando Emma e Frank se encontram no lago, com ele a socorrendo. A composição se chama, corretamente, Frank Churchill Arrives, e quase podemos sentir o coração de Emma batendo mais forte. Outro ponto importante da história é quando Harriet, vivida por Toni Colette, é atacada por ciganos e se torna, de uma hora para a outra, extremamente popular entre a sociedade. Mais agitada, a canção é exagerada, assim como a narração de Harriet, que a cada recontada acrescenta outro novo detalhe. 

Um dos momentos, no entanto, mais significativos da narrativa clássica que a compositora adotou no filme Emma (1996) foi quando a personagem principal acaba insultando a senhora Bates, uma mulher sem grandes recursos que sempre teve respeito por ela. Conseguimos sentir o remorso na personagem quando essa faixa em particular toca, e na qual Emma, finalmente, enxerga seus erros infantis pela puxada de orelha que o senhor Knightley (Jeremy Northam) não deixa de dar. Mas, sem sombras de dúvidas, a canção mais emocionante da trilha sonora é a chamada The Proposal, na qual Emma e Knightley conversam sobre suas diferenças e admitem que se amam. A canção dá um ótimo fim a película, com uma acalentadora sensação de amor correspondido.   

Rachel consegue combinar o sentimento nostálgico do século XVIII com a esperança cega de Harriet, a seriedade de Knightley e a vivacidade de Emma, tudo em um pacote só, descrevendo não só os personagens, mas seus problemas e virtudes, e, o mais importante: seus desejos.  

Emma (1996) é uma deliciosa trilha sonora

Embora Rachel Portman não tenha conduzido as composições que ela mesma criou, ela as orquestrou com uma maestria de cair o queixo. A compositora foi indicada ao Oscar mais duas vezes, pelo filme Chocolate (2000) e por Regras da Vida (1999), mas Emma (1996) continua a ser uma de suas obras-primas no cinema. Hoje, Rachel é casada com o produtor Uberto Pasolini e vive com ele e suas três filhas na Inglaterra. Uma vida digna das heroínas de Jane Austen, sem dúvidas!    


Jean Louis para Kim Novak em Sortilégio do Amor (1958)

*aviso: spoilers sobre o filme

Em 1958 o nome do estilista Jean Louis já era conhecido como sinônimo de classe instantânea no meio artístico. Nascido 41 anos antes, em 5 de outubro, em Paris, na França, Jean Louis Berthault era tão charmoso quanto era talentoso. Ele começou sua carreira em sua cidade natal, trabalhando na casa de alta costura Agnes Drecoll, no final de 1930, logo depois de se formar na escola de design Ecole des Arts Decoratifs. Mas tudo realmente começou, de acordo com o artigo do jornal LA Times, em 1935 quando ele resolveu passar uma temporada em Nova York e enviou alguns de seus rascunhos para a firma da estilista Hattie Carnegie. Não foi contratado na época, mas acabou causando uma grande impressão em Hattie, que o acabaria empregando alguns anos mais tarde. 

A primeira estrela que lhe deu atenção total foi Irenne Dunne, que abriu um leque de possibilidades e clientes para Jean, antes de entrar no meio artístico, mas a verdadeira mulher por trás de seu sucesso no cinema foi Joan Cohn, a esposa do chefe do estúdio Columbia, Harry Cohn. Conhecida por seu gosto impecável, ela adorava cada nova peça que Jean Louis criava e sugeriu que seu marido o contratasse para criar figurinos para as estrelas do estúdio. 

Jean Louis em 1993                                                                       Divulgação
A jornada de Jean em Hollywood começou em 1944 ao criar os figurinos para o filme A Obra Destruidora (Secret Command) e ele continuou a trabalhar em mais de 160 filmes ao longo de sua carreira. Sua maior musa, talvez, tenha sido Loretta Young, para quem criava lindos vestidos que ela usava em seu programa The Loretta Young Show (1951-1963). Young acabou se tornando sua terceira e última esposa. Sua maior colaboração na carreira, no entanto, foi ao lado de Rita Hayworth, a deusa do amor de Hollywood, para quem criou inúmeros vestidos em nove filmes de extremo sucesso, incluindo o clássico noir Gilda e Meus Dois Carinhos (Pal Joey), de 1957, que foi a forma de Harry Cohn mostrar que Rita estava passando a tocha de maior estrela da Columbia para a novata Kim Novak. 

Jean Louis trabalhou com Novak em sua estreia como protagonista no filme Férias de Amor (Picnic), de 1955 e em Sortilégio de Amor (Bell Book and Candle), de 1958. Logo depois de trabalhar no filme, o estilista resolveu sair do estúdio da Columbia Pictures e criar sua própria grife, a Jean Louis Inc, além de trabalhar como freelancer para inúmeros estúdios já que o star system estava falindo. 

Kim Novak foi a última grande estrela da Columbia Pictures                             Columbia/Gif
Em Sortilégio do Amor (Bell Book and Candle), conhecemos a sedutora Gillian Hoyrold, vivida por Kim Novak, uma bruxa moderna e independente que é dona de uma loja de antiguidades. É assim que ela acaba conhecendo Shepherd Henderson (James Stewart) e descobre que ele está comprometido com uma pessoa que ela odeia, sua rival e vizinha Merle Kittridge (Janice Rule). Inconformada com a situação, ela pede ajuda de sua tia Queenie (Elsa Lanchester) e seu primo Nicky (Jack Lemmon) para fazer com que Shepherd se apaixone por ela. O que ela não esperava é que ela  se apaixonaria por ele também. 

Acompanhado do roteiro, dos cenários e da direção do filme, os figurinos de Jean Louis servem como reafirmação da história do filme Sortilégio de Amor. A primeira vez que vemos a personagem de Kim Novak, Gillian Hoyrold, ela está com seu gato e único companheiro, Pyewacket em seu ombro, e com uma roupa despojada: uma blusinha solta vermelha e uma calça preta. Duas cores fortes, que representam, respectivamente, sedução e mistério. Os seus pés descalços demonstram sua ligação com o local, já que a loja significa muito para Gillian, como se fosse uma segunda casa. 

Columbia Pictures/Divulgação
Outra marca registrada dos figurinos desenhados especialmente para Kim Novak para o filme Sortilégio do Amor (Bell Book and Candle) foram os longos decotes nas costas. Ao longo da película, enquanto Gillian tenta conquistar o amor de Shepherd por puro egoísmo, ela aparece com cores fortes, sempre rodeada do familiar preto e vermelho e com o decote nas costas, símbolo de uma sensualidade mais elegante, que permite que os olhos sigam a linha natural das curvas da personagem, que usa, inclusive, sua beleza para conquistar seu mais novo alvo. 

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Outra ponto interessante na composição do figurino da personagem é o uso de capas com capuz. Vale a pena relembrar que o filme foi lançado em dezembro de 1958 e que o mesmo se passa durante o brutal inverno de Nova York. Mesmo assim, não pode ser coincidência: Gillian usa o seu casaco com capuz em três ocasiões importantes: primeiro quando decide, de vez, ao lado de seu primo e tia, a lançar o feitiço de amor em Shepherd. Na segunda, ela o usa na primeira vez que aparece íntima ao lado de seu mais novo enfeitiçado. Já na última vez, Gillian usa um vestido com capuz para dar adeus ao seu romance com Shepherd. Neste ponto da história ela já estava apaixonada por ele de verdade, e, logo depois dá adeus a sua vida como bruxa, uma clara referência à sua jornada com seu amado: gostar, conhecer e amar. 

Ela é a única personagem no filme todo que utiliza essa vestimenta e por um motivo: é uma roupa chique e sensual que revela muito de sua personalidade: obstinada, sempre quer as coisas à sua maneira, não importa quem ela machuque no final. 

O preto, aliás, é uma cor que absorve luz, que reflete o egoísmo inerente da bruxa   Columbia/Divulgação/Montagem
Outro coringa no guarda-roupa da personagem Gillian é seu casaco dupla-face com estampa de leopardo. Quando ela se encontra com seu primo, Nicky, ela deixa visível a parte da estampa, para mostrar que não se intimida por ele. Mas ao contar para Shepherd sobre seu lado bruxa, ela deixa a parte da estampa de leopardo do lado de dentro, como um luto antecipado pelo amor que irá perder. 

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O confronto final entre Gillian e Shepherd ocorre, curiosamente, no mesmo local em que eles se conheceram, com quase a mesma roupa, pela primeira vez. É como se os personagens, já desinibidos com seus sentimentos, tentassem voltar ao começo para terem um novo desfecho. Apesar da personagem de Kim Novak se vestir de preto; representando a morte de seu tempo como bruxa e o enterro de sua frieza: ela agora ama alguém e isso muda tudo. A perda de Pyewacket, seu animal de estimação e familiar mais querido, representa isso também: um novo começo, sem bruxarias. 

Ela finalmente consegue chorar                                           Columbia/Divulgação
Na próxima cena, a do reencontro com seus dois grandes amores: Pyewacket e Shepherd é que conseguimos ver como a personagem mudou, só de observar para suas roupas. Se antes ela era conhecida por usar roupas de cores fortes, com cortes agarrados ao corpo curvilíneo e uma maquiagem impactante que acentuava sua beleza felina, sua nova versão apaixonada passa longe disso. Tons pastéis dominam sua nova paleta de cores e ela é vista usando um vestido com um corte trompete, mais solto. Diferentemente de antes, ela agora não tenta se sobressair: Gillian se mescla com o ambiente e tenta viver do modo mais natural possível.  

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Sortilégio do Amor (Bell Book and Candle) não foi um filme que fez sucesso quando estreou em 1958, apesar de ter sido indicado para dois Oscars: o de melhor figurino para Jean Louis e melhor decoração de set para Carry Odell e Louis Diage, mas hoje tem um seguimento cult que valoriza não só a história, mas a beleza do filme, desde seus figurinos até a atuação de grandes estrelas de Hollywood que fizeram o longa-metragem se tornar muito mais que um diamante bruto. Um verdadeiro feitiço apaixonante. 

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Casos de imitação: Rebecca e a sua Sucessora

Rebecca pode até ser a mulher inesquecível, mas foram suas sucessoras que ganharam destaque: Marina e a Sra. de Winter.  Ambas inocentes, de famílias humildes, que se casaram com homens ricos e que são assombradas pela imagem aparentemente perfeita da primeira esposa de seus maridos. Essa mesma sinopse, aliás, acabou sendo usada por duas escritoras: Daphne du Maurier de Rebecca e Carolina Nabuco, autora de A Sucessora. 

Uma coincidência inocente ou plágio?

Carolina (à esquerda) e Daphne foram unidas por uma história bem similar          Divulgação/Fotos de livros

De acordo com a própria Carolina Nabuco em sua autobiografia Oito Décadas: Memórias, a história teria acontecido mais ou menos assim: esperançosa de ver seu livro A Sucessora publicado em inglês, ela mandou um manuscrito já traduzido para vários editores nos Estados Unidos e confiou mais um para um agente literário na Inglaterra. Mal sabia ela que ao invés de publicarem seu livro, ele seria usado como base para o lançamento, quatro anos depois, do livro Rebecca: A Mulher Inesquecível, da londrina Daphne Du Maurier. 

E não foi só Nabuco que percebeu as semelhanças entre os dois romances: em 1941, um jornalista do New York Times, Frances R Grant percebeu como os livros eram parecidíssimos e escreveu o seguinte artigo An Extraordinary Parallel Between Miss du Maurier's "Rebecca" and a Brazilian Novel; Literary Coincidence (Um Extraordinário Parelelo entre o livro Rebecca da sra. du Maurier e um livro brasileiro; coincidência literária).  

Nele, o jornalista traça os similares paralelos entre as duas obras e admite que "se isso é uma coincidência,  é uma das mais surpreendentes da literatura". Ele ainda conta que Carolina ficou sabendo da obra através da carta de um amigo que morava na Inglaterra, com o seguintes dizeres: "Você já leu a versão em inglês de A Sucessora? Eu estava lendo Rebecca e era como se eu estivesse lendo A Sucessora. Soube que Daphne escreveu o livro em 90 dias." E o caso entre Rebecca e a Sucessora ainda estava longe de terminar. 

Divulgação

Quando o filme Rebecca: A Mulher Inesquecível estreou aqui no Brasil em 1940, dirigido por Alfred Hitchcok e estrelado por Laurence Olivier e Joan Fontaine, Carolina contou em sua autobiografia que o advogado da United Artists, a companhia de cinema financiando o longa, aproximou-se do seu advogado tentando convencê-la a assinar um documento afirmando que as semelhanças entre seu livro e o de Daphne e, consequentemente, do filme, não passavam de uma mera coincidência. Se ela o fizesse seria recompensada monetariamente por isso. Nabuco recusou, é claro.  

Assim, até hoje a dúvida permanece: teria sido a obra de du Maurier plágio ou apenas inspirada no livro brasileiro? Vale a pena mostrar que as evidências, quando empilhadas, não estão ao lado de Daphne Du Maurier. Além de ter escrito o livro depois de Nabuco, ela possivelmente teve acesso ao manuscrito do seu livro pelo seu agente literário, já que na época ela era uma escritora publicada com quatro livros de moderado sucesso. 

Tanto Daphne quanto seu editor negaram qualquer cópia de Nabuco, mas um processo veio de qualquer maneira, em 1941 não por Nabuco e sim em nome da escritora Edwina MacDonald pelo seu livro Blind Windows, lançado em 1927. Segundo os herdeiros de Edwina, existiam inúmeros paralelos entre as duas publicações: 46 paralelismos para ser mais exata. A verdade? De acordo com uma sinopse do livro no The New Orleans of Fiction: A Research Guide de James A Kaser, o romance de MacDonald conta a vida da heroína Wilda que resolve se casar com um homem mais velho e com dinheiro, um viúvo. Ele tem uma filha de sete anos e logo Wilda percebe que não se encaixa naquela sociedade de Nova Orleans. Ela acaba se separando de seu marido e casa-se de novo, buscando sempre mais fortuna e poder.  

Em Blind Windows, Wilda também é rodeada pelas memórias da primeira esposa de seu marido, mas é aí que a coincidência começa e também acaba ao se comparar com os livros de Daphne e Nabuco. Carolina Nabuco, uma das figuras mais amadas da época no Brasil, filha de Joaquim Nabuco, famoso diplomata e político, teria muito mais chances em um processo contra Daphne, se ela tivesse perseguido esse caminho. 

    Suzana Vieira como Marina na novela A Sucessora e Joan Fontaine no filme Rebecca                Divulgação
 
Isso porque as semelhanças entre as duas histórias são fortes demais: de um lado Marina, em A Sucessora, uma inocente menina do campo, que acaba se apaixonando pelo viúvo Roberto Steen e se muda com ele para uma luxuosa nova casa em Petrópolis, no Rio de Janeiro enquanto se sente assombrada pelo quadro emoldurado de sua antiga esposa Alice, tendo que suportar sua cunhada Germana, que idolatra a primeira esposa de Roberto. Do outro, a nova esposa de Max de Winter, em Rebecca, sem nome, uma mulher simples que se vê assombrada pelo quadro da bela Rebecca e pela a antiga empregada, a senhora Danvers, que tenta, à todo custo, deixar a memória de sua patroa viva.  

O filho de Daphne, Kits Browning, concedeu uma entrevista ao jornal The Telegraph e nem sequer mencionou a acusação de plágio. Para ele, sua mãe teve a ideia durante uma viagem no Egito e pelo ciúmes que ela tinha da primeira noiva de seu marido, chamada Jan Ricardo, que assinava seu nome com um lindo R. Juntando isso, com sua casa em Milton Hall na qual trabalhava uma estranha empregada e essa é a justificativa de Daphne e seu filho para a composição de Rebecca. 

Existem diversos pontos em comum em ambos os livros que não podem ser negados: uma sala reservada apenas para o quadro da primeira esposa, a sensação de serem observadas por serem as sucessoras, a comparação constante de amigos e parentes, e a busca, de uma maneira ou de outra, para se livrarem da casa que jamais pertencerá à elas.

Será que essas evidências justificariam o suposto plágio de Daphne Du Maurier com a obra de Carolina Nabuco? 

As evidências apontam que a sucessora é a Rebecca e não Marina, mas talvez isso permaneça um mistério para sempre. 

A beleza do filme Quando Só o Coração Vê (A Patch of Blue) - 1965

A história improvável de uma garota cega que faz amizade com um homem negro se tornou um dos grandes best sellers de 1961 quando foi lançado sob o nome de Be Ready With Bells and Drums, traduzido como Esteja Pronto com Sinos e Baterias, pela australiana Elizabeth Kata. No livro conhecemos Selina, vítima de uma família negligente e uma infância pobre que acaba sendo cegada, acidentalmente, pela própria mãe, Rose-Ann. Ela passa seus dias sozinha, fazendo tarefas em casa para Rose-Ann e seu avó, o bêbado Ole Pa. Um dia, ao conseguir fazer com que a levassem para o parque, Selina conhece Gordon, o jovem negro que acaba mudando sua vida. 

Com um Oscar de Melhor Ator em seu currículo, a escolha de Sidney Poitier para o papel de Gordon Ralfe foi clara para o diretor do filme Guy Green desde o ínicio. Foi sua esposa, Josephine Smith, de acordo com o livro The cinema of Sidney Poitier: the black man's changing role on the American screen (O Cinema de Sidney Poitier: a mudança de papel do negro na tela americana) por Lester Keyser e André Ruszkowski, que leu o livro de Kata e ficou impressionada pela história. Ela conseguiu convencer seu marido a ler também. A partir daí Guy conseguiu convencer o famoso produtor Pandro S, Berman, da MGM, de investir na história se o Sidney Poitier concordasse em estrelar no filme e se pudessem mudar o nome do longa de Be Ready With Bells and Drums, título original do livro, para outro sugerido por Josephine. Assim nasceu o título A Patch of Blue, traduzido no Brasil como Quando Só o Coração Vê. 
A novata Elizabeth Hartman e Poitier tinha uma ótima química                                      MGM/Gif
O filme começou a ser produzido em novembro de 1964 e Sidney não deixou de dar suas fortes opiniões. Sua imagem em Hollywood era a do negro civilizado, de classe média e que sempre honrava seus princípios e que, como sempre, não ficava com a menina branca no final. Mas de acordo com sua biografia Sidney Poitier: Man, Actor, Icon de Aram Goudsouzian, Poitier não queria que o roteiro focasse tanto na natureza da raça e sim no romance entre os personagens e fez com que Pandro e sua esposa, Kathryn, os roteiristas do longa-metragem, trabalhassem nisso. Infelizmente, no filme, isso não necessariamente acontece: o romance se desenrola, mas é prematuro, com apenas uma cena de roçar de lábios. 
Três anos depois da estreia de Quando Só o Coração Vê, em 1968, em uma entrevista para a Ebony Magazine em abril, ele revelou como esse potencial perdido sempre o irritou: "Eu nunca trabalhei em um filme em uma relação entre homem-mulher que não fosse simbólica. Eu sempre quis trabalhar com uma mulher negra em uma relação homem-mulher no cinema que fosse quente e positiva. Eu não estou interessado em ter um interlúdio nas telas com uma garota branca, eu prefiro tê-las com mulheres negras." Vale lembrar que Sidney já estava farto de se encaixar no molde de "negro bom" que Hollywood queria que ele honrasse. 

Por isso, embora a relação de seu personagem Gordon com Selina funcione de certa forma com o estereótipo de Magical Negro, já que ele ajuda a garota cega a enfrentar seus problemas e resolvê-los, Sidney está de longe de ser um mero instrumento no roteiro. Ele é o protagonista da história ao lado de Hartman e conseguimos ver, claramente, suas emoções, indecisões e o amor que a personagem de Gordon nutre por Selina. 

Agora se Sidney Poitier já estava certo como o protagonista da história, a atriz que ocuparia o papel de Selina não estava definido. Inúmeras atrizes fizeram teste para o papel, mas o diretor Guy Green soube que Elizabeth Hartman era a certa assim que a viu. Extremamente tímida, a jovem de 21 anos de idade tentou a sorte em Nova York duas vezes. Na primeira, de acordo com o artigo no LA Times, ela nem conseguiu sair do seu quarto de hotel e voltou para sua casa em Ohio. Na segunda, com um agente, ela estrelou na peça "Everybody's Out, The Castle is Sinking" e chamou a atenção de olheiros da MGM. 

Sobre ela, o diretor de Quando Só o Coração Vê (A Patch of Blue), Guy Green, foi certeiro: "Ela não era uma garota glamourosa. Mas eu lhe dei um teste de personalidade e ela foi muito bem para alguém que não tinha nenhuma experiência em frente às telas. Eu disse ao Sidney que eu queria uma desconhecida para o papel e ele ficou horrorizado até que eu arranjei para que os dois trabalhassem juntos no set e ele também ficou feliz com ela." 

Os coadjuvantes do filme Quando Só o Coração Vê                               Divulgação/Montagem
Elizabeth também visitou o Instituto de Braille nos Estados Unidos para pesquisar para o seu papel e foi ali, segundo Green, que ela começou a brilhar. Apesar de ter sido Shelley Winters, interpretando a odiosa e racista mãe Rose-Ann, que ganhou o seu segundo Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em 1966, foi Hartman, em seu papel de estreia que causou o maior impacto entre os críticos. Todos queriam saber mais sobre ela.  

Infelizmente, não podemos dizer o mesmo sobre um grupo de espectadores nos Estados Unidos. O filme Quando Só o Coração Não Vê (A Patch of Blue) foi inédito por mostrar, pela primeira vez, uma cena de beijo entre um homem negro e uma mulher branca. Mesmo que breve, a cena não caiu bem entre os racistas e, principalmente, entre os membros da Klu Klux Klan. Em Memphis, a seita fez um protesto na frente do teatro pedindo que pessoas não vissem o filme já que ele "não era de Deus." Já na Carolina do Norte, alguns meses depois foi descoberta uma bomba no cinema em que o filme estava passando. A bomba, como o livro de Goudsouzian conta, falhou. 

O diretor Guy Green resolveu gravar o A Patch of Blue em preto e branco                          Divulgação/MGM 
Apesar dos protestos, o filme se tornou um dos mais bem-sucedidos de Poitier, arrecadando seis milhões de dólares no mundo todo e foi indicado a cinco Oscars, incluindo o de Melhor Atriz para Elizabeth, além de direção de arte e trilha sonora. Mas nem esse sucesso impediu que a carreira de Hartman, devido à sua timidez pavorosa, se tornasse cada vez mais obscura com sua recusa constante de papeis. A vida dela teve um triste fim, em 1987, aos 43 anos de idade quando se suicidou. 
Quando Só o Coração Vê é um filme tocante que lida com a cegueira, a raça e a miséria dos personagens da forma mais realista possível. O final do longa se difere do livro e talvez pelo impulso dos produtores de se focarem no romance, nós espectadores, tenhamos perdido uma análise mais profunda entre o amor e o preconceito. Mesmo assim, Quando Só o Coração Vê é afinal o retrato de um amor não-realizado entre um homem e uma mulher e essa é, possivelmente, um dos elos mais poderosos que um ser humano ainda pode ter. 

Confira, abaixo, nosso vídeo com 5 curiosidades sobre o filme!



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